sexta-feira, outubro 19, 2007

... e foi aí que começaram meus problemas.

(parte I)

Fala com a voz límpida, um forte sotaque carioca e uma gentileza que, em outras circunstâncias, eu até teria apreciado:

- Estamos com sua filha. Junte cem mil reais e espere por nossa ligação. Se você falar com a polícia, ela morre.

Desliga. Fico olhando para o celular, apatetado. A primeira coisa que me vem à cabeça quase me faz vomitar, e fecho os olhos de tanto ódio que sinto de mim mesmo naquele segundo: “pelo menos, não vou mais gastar dinheiro com brinquedos”. Existe algum canto muito perverso na minha cabeça para que eu pensasse nessa piada sórdida. Porém, tudo faz parte da insanidade daquele telefonema – a realidade deu uma pausa. Instantes depois, eu já esclarecia a vista, e a sucessão de coisas a fazer parecia definida. Não há tempo para ficar ruminando sobre os monstros que habitam na mente da gente.

Com um pulo, corro para a porta da frente, pegando a chave do carro e a carteira no caminho.

*

Disparo com o carro pelas ruas que me levarão à escola. No caminho, agarro o celular com força, tentando acertar as teclas do número da diretora. Eu os sei de cor, mas a velocidade e o nervosismo tornam tudo mais difícil. Finalmente, jogo o celular para o banco traseiro; estou perto, afinal de contas. Penso em Márcia: aquela era a primeira semana que minha ex-esposa havia me deixado ficar com a Clarissa. Como eu posso dizer a Márcia que a haviam levado? Como conseguiria a confiança dela de volta?

“Nada disso”. Seguro o volante com as duas mãos. “O problema principal está na sua frente, resolva-o antes de pensar em outros”. Essa foi uma das boas coisas de meu treinamento no Exército, a capacidade de isolar as variáveis e pensar em uma bronca de cada vez. E, neste momento, meu problema é conseguir Clarissa de volta, e não lidar com Márcia. Foco. Preciso de foco.

Freio o carro, as rodas guincham. Saio, deixando a porta escancarada. Imagino encontrar jornalistas, carros de política e professores assustados na frente da escola, mas não há ninguém. Corro através do portão, sem sentir meu próprio fôlego. Alguém grita para que eu pare. Ignoro: o cenário à minha frente se movimenta como num sonho. Entro no prédio do maternal; um grupo de crianças olham para mim, petrificadas de susto. Pulo os degraus das escadas. A sala dela fica no sétimo andar.

Quando chego lá, a fadiga em minhas perna começa a dar seus sinais. Ignoro: é estranho. Fora algumas crianças fazendo algazarra no corredor, não há sinal de polícia, nada. Penso, horrorizado, que talvez o seqüestrador a tenha raptado no caminho para casa. Mas mesmo isso não faz sentido, não a deixariam partir da escola desse jeito, não uma menina de cinco anos. Senão, eu pago essa mensalidade absurda de cara pra quê? Pra não poder deixar meus filhos no colégio com segurança, o mínimo que se precisa pra que a gente possa viver e trabalhar em paz? A culpa é desse governo, que não investe nada em segur...

Lá vou eu, me dispersando de novo. Foco. Pense no treinamento. Eu sou um soldado. Eu farei o que for necessário para que as coisas fiquem bem novamente.

Chego na porta da sala de Clarissa. Viro a maçaneta e jogo a porta para trás. A professora e as quinze crianças param de falar e olham em silêncio para mim, um silêncio que me corta em dois. Instintivamente, meus olhos se dirigem para o fundo da sala, onde ela costuma ficar. Caio de joelhos lentamente. Escuto vozes, mas nada ouço; olho as crianças, mas não as vejo. Finalmente percebo meu fôlego curto e estrangulado quando vejo Clarissa sair do meio dos meninos e correr em minha direção, rindo seu sorriso banguela, os braços muito abertos.

*

Horas depois, eu, Márcia e Clarissa saímos do circo que eu havia criado. Acomodamos-nos no carro – que, por um milagre, ainda estava com as portas escancaradas em frente à escola. Seguimos lentamente, quietos. Eu falara com a diretora, policiais, o porteiro: Clarissa não havia saído da sala de aula a manhã toda. Finalmente, percebi que havia sido vítima de uma daquelas simulações de seqüestro, em que o marginal liga de um telefone do interior do presídio e finge que raptou alguém de sua família. Um golpe corriqueiro hoje em dia, mas que já deixou desesperada (e mais pobre) gente mais sã do que eu.

Márcia, ao meu lado, parecia mais aliviada do que irritada. Clarissa, alheia às preocupações, observava a rua. Tudo em paz novamente.

Na metade do trajeto de volta à casa, um celular toca. O meu. Na confusão, eu o havia esquecido no chão do carro. A mãozinha delicada de Clarissa o pega e estende para mim. Agradeço e, antes de atender, vejo o número da chamada: “privado”. A mesma mensagem da ligação anterior. Era o “seqüestrador”:
- Alô? – falo, tentando segurar a raiva.

- Já juntou o dinheiro?

- Você deu azar, meu querido. – vejo, com o rabo do olho, Márcia ouvindo atentamente a conversa. – Minha filha está aqui comigo. Se você ligar de novo pra mim ou pra minha família, vou te cortar em pedacinhos e fazer você comer. Capisce?

Silêncio. Não deveria ter dito isso com a menina no carro, mas preciso descarregar meu ódio de alguma forma.

A gentileza da voz do carioca some e ele começa a gaguejar. Estranho, ele já deveria ter desligado o telefone.

- Vo-vo-você está louco, cara. Tamos aqui com sua filha. Quer que ela morra?

- Vá se foder. – murmuro, e desligo. Márcia olha para mim. Não sei se foi a melhor reação, mas agora já era. Esses caras do golpe nunca ligam de novo.

Meu celular toca. “Privado”. Penso se devo atender ou não. Atendo.

- Vá se fo-der! – repito, mais feroz. Minha ex-esposa sussurra para que eu desligue. Mas já é tarde demais. Ouço vozes ao fundo – um soluço. Choro de criança.

- Você é doido, seu Eduardo. Estou com a faca na garganta da tua filha. Se continuar falando comigo assim, corto a cabeça dela fora.

Paro o carro no acostamento, sob uma chuva de buzinas. Márcia está puxando meu braço, apavorada, pedindo que eu desligue imediatamente. Clarissa está de olhos arregalados e parece que vai desatar a chorar. Meu nome não é Eduardo.

- Meu nome não é Eduardo.

- Hã?! – pausa. O choro aumenta. – Esse não é o 9147-8716?

- Não. Esse não é meu número, e meu nome não é Eduardo.

Pausa.

- AH! PUTA QUIU PARIU! – ouço tapas e o carioca gritando com alguém. Gritos de homem ao fundo. O choro continua. – Filho da puta!! Seu viado escroto burro filho da puta! – Mais tapas. - ... pegou o telefone errado, seu escroto burro! Burro!!

Sinto-me no meio de um episódio dos Trapalhões. Mas o humor é rapidamente substituído pela voz nervosa do Carioca:

- Aí, meu chapa. Agora fudeu. Você tá metido nessa e vai ter que ir até o fim. Vai lá na... me passa o endereço, viado burro... vai na Rua Laranjeiras, 317. Fala com Eduardo Scherer, diz que estamos com a filha dele e que é pra esperar minha ligação. “Capixe”?

- Isso não é problema meu. – respondi. – Não tenho nada com isso.

- Rua Laranjeiras, 317. Fala com Eduardo Scherer. E rápido. Essa aqui pode não ser tua filha, mas vai pro saco de você não se mexer. E a culpa vai ser tua. – desliga.

Olho para Márcia, que está quase aos prantos, sem entender nada. É sempre assim: quando você pensa que seu dia já está chegando ao fim, descobre que ele nem começou.


(... continua!)

quinta-feira, outubro 18, 2007

tu vientre es una plaza soleada

Não sei se quero responder a essa pergunta. Mas vá lá, se eu não responder agora terei que fazê-lo outra hora, pois sempre haverá um gaiato esperando pra jogar isso em cima de mim:

- Você não deveria se surpreender por todas as histórias possuírem algo sobre o amor no meio: todas as histórias falam de amor. Todas as que importam, ao menos. E, antes que comece a reclamar de minhas generalizações e dizer que relativizo tudo, peço que olhe para cá e escute um instante:

Qual é a história que você já ouviu ou leu que não versasse sobre o amor? Já leu um romance que não falasse dele? E o quê significa “romance”, por acaso, senão o cortejo, a atração? Desafio a você para que me aponte uma única narrativa que não contemple o amor feliz, o fracassado, o amor de uma filha por um pai, de um homem por uma idéia, de alguém por si mesmo. Vamos parar de pensar apenas no amor de um ser humano pelo outro, já tão repisado. Falo dos outros nomes que o amor possui, inclusive daquele que não ousa dizer seu nome. A obsessão é o amor por um pensamento; a vingança, por uma revanche. Por Deus. Pela Pátria. Por um desejo alucinado, por uma virgem descarnada, pela arte, pelo ofício, pela fantasia; tudo é sobre o amor.

Não há livro, filme ou quadro que escape desse desígnio, não há mito que tenha sua origem fora dessa esfera. Não falo do amor sentimental, mas do arcaico, daquele que nos envolve e preenche, que nos impele, que nos ensina a sobreviver, daquele que nos força a contar nossas histórias. O amor me trouxe até aqui; e o amor me levará embora.

segunda-feira, outubro 15, 2007

lucyenne quer ser batman

Que as crianças se atraem por tudo o que é macabro e tenebroso, não é novidade. Nessa idade, o interesse pelas brincadeiras inocentes de casinha e carrinho andam lado a lado com a mania por decapitações, chacinas e crueldades dos filmes de terror e dos telejornais. Há um quê de proibido e asqueroso no cotidiano habitado por insetos e corpos putrefatos, monstros e fantasmas, que provocam menos repulsa que fascínio em meninos e meninas.

Lucyenne conheceu o macabro cedo e de forma mais terrível do que em simples histórias de fantasma. Aos nove anos, viu a mãe morrer em decorrência do câncer que a devorava há muito. O pai, já ausente e dado a sumiços prolongados, preferiu entregar menina nos braços da tia. Paciência, pensou. Havia um tesouro mais precioso na casa da tia do que a vida opaca que levara até então: a coleção de revistas em quadrinhos no armário do primo.

Ali, desde o momento em que terminava o dever da escola até a hora de dormir, ela se realizava com histórias violentas de crimes e assassinatos, anti-heróis sombrios de mundos onde a linha entre a loucura e a sanidade se mostrava fugidia. A menina vivia sob o signo da incerteza – não sabia o que queria fazer na vida, quando sairia da casa dos parentes ou como lidaria com sua maturidade precocemente adquirida -, e enxergava seus conflitos, de alguma forma, nos gibis. Gostava, sobretudo, das aventuras do Batman, o que lhe rendeu chistes maldosos no colégio:

- Menina que lê Batman é sapatão.

- Ora, por quê?

- Menina que pergunta muito também é sapatão.

Risos. A tia também não apreciava o gosto da Lu, e sempre a chamava para lugares que toda menina, pensava, gostaria de ir: salões de beleza, chá de senhoras, o bingo. Lucyenne a acompanhava passivamente, mas, assim que chegava em casa, se trancava no quarto com o primo para ficarem a sós com as revistinhas.

Lucas, o tal primo, obviamente não ficou indiferente a essa invasão surpresa. A princípio, tendo a mesma idade que ela, a enxotava do quarto toda vez que a via debruçada sobre a escrivaninha, lendo os gibis.

Depois de algum tempo, passou a usar métodos mais perversos para expulsá-la:

- Por quê você gosta do Batman?

- Por que ele bate nos bandidos. – respondeu a menina, sem interromper a leitura. - Quando eu crescer, vou ser igual a ele.

- Ruá, ruá, ruá. Você é louca.

- Por quê?!

- Você é pobre e escurinha.

- E daí?!

- O Batman é rico e branco. E é homem. Sua maluca.

Depois de jogar a bomba, Lucas saiu. A menina fechou a revista e pensou naquilo. O primo tinha razão, não havia dúvida. Bruce Wayne era tudo o que ela não era: grande, forte, podre de rico e, a ver pelos músculos, tinha boa saúde. Por outro lado, não aceitou que Batman fosse branco: ele era negro, possuía máscara e capa pretas. Ele ficava bonito, com o capuz e as luvas negras; ela também ficaria, quando chegasse a hora.

Lucyenne cresceu. A leitura dos gibis diminuiu, enquanto sua retidão e timidez prosseguiram. Ainda assim, Bruce Wayne guiava sua vida, de algum modo: ainda sonhava em ser rica, em trabalhar e tomar conta de si mesma. Estava louca para sair da casa da tia, que, quando percebeu que não conseguira transformar a sobrinha na filha prendada que sempre quis ter, não parava de atormentá-la com brigas e pequenas discussões. A fim de economizar dinheiro para alugar um apartamento, Lucyenne trabalhava à tarde numa loja do shopping e fazia cursinho à noite. Não sobrava muito tempo para o homem-morcego.

Um dia, já com seus dezesseis anos, estudava na escrivaninha de Lucas. Os gibis do armário haviam ido para o lixo há anos, e ela só continuava a ir para o quarto dele porque era o único lugar da casa onde a luz era decente para ler. A escrivaninha também era confortável. Acabou cochilando.

Acordou com uma mão gelada no ombro. Teve um sobressalto quando viu o primo diante de si, sorrindo. Ele murmurou algo, mas Lucyenne sentiu apenas o fôlego nauseante de álcool que exalava. Pediu desculpas por ter ocupado a mesa e já se levantava quando a mão dele apertou seu ombro e a forçou a ficar sentada. Ele aproximou a boca do rosto da menina – o bafo luminoso da cachaça, os olhos injetados e felizes – e pressionou seus lábios contra os dela. Mão gelada subindo pela blusa. Arrepio. Instintivamente, ela o empurrou e se jogou da cadeira, aterrissando sobre a porta e a abrindo com força.

Disparou para a sala, e daí para a rua, e daí para o mundo.

*

Lucyenne caminhou até o janelão que se estendia de um lado a outro da imensa sala: sentiu o ar gelado que se insinuava pelas frestas, apreciou o cenário das árvores balançando contra o vento noturno, o silêncio e a quietude.

Antes que desviasse o olhar, porém, um raio de luz cortou o céu: a figura de um morcego deitou sobre as nuvens, pairando como uma sentença sobre o céu iluminado de Gotham City. Como em tantas outras vezes, a cidade precisava dela; e ela, por instinto, já corria para a passagem secreta que dava acesso à bat-caverna.

Por último, a moça calçou as botas, erguendo o capuz que provocava tanto terror no coração dos criminosos de Gotham. Não havia tempo a perder. Pulou para dentro do Batmóvel, engatou o turbo e disparou rumo ao coração da cidade, desaparecendo com um estrondo em meio às árvores.

ontem e hoje

ontem,
eu desejava que o dia nascesse
e a noite caísse
em rápido intervalo,
que a sucessão das horas
ocorresse instantaneamente,
sem que os segundos parecessem minutos
e os minutos, horas,
triste que era a constituição de meu espírito
e tédio o odioso tempo
em que eu, solitário, fazia-me companhia.


Mas tudo isso antes de ver a luz de seus olhos
e a leveza de sua alma.
Você me contagia com um quê que nem você sabe
o nome, sabia?
Você me enfeita e ilumina,
e todos os dias que passamos juntos
parecem-me curtos.


hoje,
desejo que o dia raie
e a noite caia
com uma imensidão de dias nesse ínterim,
que os segundos, minutos e horas
durem tanto quanto a eternidade,
tanto quanto nosso amor perdure,
benigno o efeito que sua matéria
provoca em meu uníssono,
e alvissareiro o milagroso momento
em que nós, unidos, somos todos
simultaneamente.


que a noite passe
e o dia venha,
pois já ficamos separados todos esses anos
e é hora de recuperar o tempo perdido.

sexta-feira, outubro 12, 2007

anunciação

Não sei porque, desde pequeno tenho medo desta música. Quando eu ouvia, nas rádios de Recife ou nas fitas cassetes velhas da casa de minha avó, me vinha um calafrio, talvez fosse a voz meio de profeta de Alceu Valença, ou algumas palavras soltas na letra, talvez você já tenha sentido isso. Recentemente, prestei atenção na música e percebi a razão de meu temor: eu pensava que os sinais de que a letra fala eram os indícios da chegada do diabo. Eu não acredito nestas coisas (sou mais um ateu, assustado demais para admitir a existência de Deus), mas, quando pensei nessa hipótese, tudo ficou mais claro. O tal que chega vai "brincar no meu quintal", chegar num "cavalo peito nu cabelo ao vento", já escuta os sinais, ser anunciado "nos sinos das catedrais", sei lá não parece coisa do céu. E essa "voz de um anjo" que "sussurrou no meu ouvido" tanto pode ser Gabriel quanto Lúcifer, que, antes de virar promotor na vara cível do Universo, era o anjo querido de Deus.


Da próxima vez que você for ouvir "Anunciação", pense nisso.

*

"anunciação", alceu valença

Na bruma leve das paixões que vem de dentro
Tu vens chegando pra brincar no meu quintal
no teu cavalo peito nu cabelo ao vento
E o sol quarando nossas roupas no varal
tu vens tu vens
eu já escuto os teus sinais
A voz do anjo sussurou no meu ouvido
e eu não duvido já escuto os teus sinais
que tu virias numa manhã de domingo
Eu te anuncio nos sinos das catedrais
Tu vens tu vens

*

(17)

Eu sou um monstro, uma besta. Perdi a capacidade de sentir, de demonstrar compaixão, coisas assim. Ódio e orgasmo nada mais significam: cuspo com indiferença a trajetória monótona dos dias.

Para quê, pergunto, tanto ruído, tanta choradeira...? Sinto meu sangue uns cinco graus mais frio... atingi a temperatura corporal de um crocodilo. Não espere de mim mais do que esperaria de um réptil. Não mais me encaixo na classificação dos seres vivos, na tabela periódica. Relações humanas, para mim, são pálidas distrações de um mundo que me rejeitou. Cultivo inimigos com a mesma intensidade com que dispenso amantes. Sou um lindo monstro.

Esqueço-me na varanda do apartamento, sem camisa, fumando um cigarro dez metros acima das buzinas e da fumaça da grande cidade. Vermes se arrastam no pavimento, suando seus problemas, carregando pastas e mudas de roupa. Nunca suo; a frigidez de minha pele, a minha esterilidade, impede infiltrações dos poros, não mais pertenço aos primatas.

Perto, reconheço uma jovem: há muito tempo, antes de minha metamorfose, ela me transmitia alguma paz, um traço de alívio. Hoje, causa-me náuseas. Me vê da rua: acena para mim, sorri. Eu poderia continuar o jogo, fingir que estou satisfeito por vê-la. Talvez, aí, tudo se tornasse mais fácil.

Mas não o faço. Permaneço imóvel, com o cheiro acre do cigarro levitando às narinas. Seu sorriso desaparece; sua mão descende. Sob meu olhar impassível, ela volta a caminhar, confusa, desorientada. Antes, dá uma última vista e tenta se convencer de que sou outra pessoa, um desconhecido.

Sou um monstro; uma besta. Os cães fogem ganindo quando me aproximo, atraio tempestades.

segunda-feira, outubro 08, 2007

o gato pardo

" Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum - uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais." (Edgar Allan Poe, "O gato preto")


Uma única imagem perseguiu-me durante toda minha longa vida: eu, aos sete anos, chorando ao lado da janela e sendo repreendida por mamãe. Também me lembro de ver minha avó debruçada na janela, procurando alguma coisa.

Tal coisa, como bem sei hoje, era seu gato pardo. Em minha crueldade infantil e, provavelmente, devido ao ciúme pelas atenções de minha avó, eu havia apanhado a pequena criatura e a lançado pela janela de nosso apartamento. Naquele momento, mamãe deveria estar gritando algo sobre não jogar gatos pela janela, especialmente se eles pertencessem a membros de nossa família.

Por décadas e décadas, essa fotografia mental me perturbou até o âmago de minha alma, fazendo-me retornar aos medos de menina no exato instante em que dela me recordava.

O impacto dessa lembrança dos meus sete anos meio que desviou minha trajetória para uma determinada direção. Nos anos seguintes, tudo – ou quase tudo – parecia originar-se daqueles gritos tenebrosos de minha mãe. Minha sensibilidade aguçou-se, e passei a considerar cada vida frágil e preciosa. Por incrível que pareça, passei a gostar de animais, e tentei transmitir à minha filha, assim que nasceu, minha paixão fervorosa por todos os seres vivos.

Dessa forma, é possível imaginar meu assombro quando, ao chegar em casa, minha mãe contou-me que a menina, em seus tenros sete anos, havia jogado seu gato pardo pela janela. Furiosa, chacoalhei a menina e berrei, disparando as frustrações acumuladas ao longo do dia e da vida, buscando fazer com que ela apreendesse a importância que cada existência possuía na tessitura do universo. Ela rompeu em prantos, obviamente. Arrependi-me do escândalo logo depois, mas não voltei atrás. Minha mãe, desesperada, buscava no asfalto o gato que a acompanhara por quase toda a velhice.

Naquela noite, temi haver traumatizado minha filha. Tive ganas de ir até seu quarto, acordá-la e beijá-la e dizer-lhe que poderia arremessar pela janela quantos gatos pardos quisesse, que eu nunca mais gritaria com ela daquele modo. Mas não o fiz: receei que, caso afagasse sua cabeça naquele momento, ela nunca aprenderia a lição. Permaneci na cama.

Creio que o incidente acabou causando grande impacto em sua personalidade. Da noite para o dia, tornou-se mais amarga e rancorosa. Os anos se passaram sem que, aparentemente, a lembrança daquele dia enfraquecesse em sua memória. Fingia ser gentil com todas as pessoas e animais, mas eu, sua mãe e criadora, sabia que ela não possuía qualquer amor sincero por qualquer ser que se arrastasse sobre a Terra. Era como se meus gritos houvessem interrompido, em um momento crítico, o natural processo de formação de seu temperamento. Naquele dia, algo morrera nela.

Ainda assim, vivi calada meus anos em seu apartamento e tolerando seus gestos vazios e indiferentes. Quando ela me comprou um gato, em sua auto-propalada ânsia de mostrar-se caridosa com sua mãe e um gato ao mesmo tempo, permaneci muda. Até quando nasceu minha neta, nenhuma satisfação cresceu em mim: observava o rostinho da criança por horas a fio, vendo-a chorar sem nada fazer. Finalmente, dava-lhe o leite ou trocava as fraldas, indefesa diante das escolhas que a vida havia me legado.

Diante da silenciosa e monótona derrota que minha filha havia me imposto, pude apenas praticar uma última vingança. Um dia, quando a neta já possuía lá seus sete anos, aproximei-me da janela com meu gato pardo. Por um largo tempo eu fingira que gostava do animal quando, na verdade, nada sentia além de asco por ele. Lembrava-me minha filha. Ela, tão fútil e cheia de si; tão vazia.

Senti que minha vida não havia passado de um tortuoso círculo de enganos e falsidades. O caminho a seguir parecia mais claro. Assim, levantei o gato e o empurrei pela janela.


sábado, outubro 06, 2007

(16)

- Até.
- Se cuida.
- Que pena.
- Então... é isso.
- Entendi.
- Era isso o que eu tinha pra dizer.
- O quê mais?
- Eu não funciono assim, não adianta.
- Você nunca vai saber o quanto te quero se não parar de agir desse jeito.
- Desculpa.
- Posso falar?
- Não dá.
- Você nunca vai saber o...
- Não te desejo dessa forma. Pode achar que é frescura, mas estar com você é muito mais.
- Então porque a gente não trepa e pronto?
- Sei que não.
- Mas eu não sou um totem.
- Talvez eu fique um pouco intimidado, sim.
- Você tem medo de mim?
- Tá.
- Responde uma pergunta.
- Também gosto de te ver.
- Gosto de te ver na noite, com uma bebida na mão.
- Andei meio recolhido.
- Cadê você?
- Pois é.
- Tempão, hein?

quinta-feira, outubro 04, 2007

o livro

Escrevi um romance pra você.

Sim, pra você. É uma comédia; quer dizer, é uma comédia dramática. Fala sobre nosso tempo juntos e o que ocorreu depois. Pensando bem, não houve nada de muito engraçado nessa época, houve? Então, retiro o que disse: é um drama. Um grande épico dramático, com alguns toques de humor negro. Tive que colocar isso pra que não ficasse muito chato, afinal, por mais que disséssemos que nossa história fosse extraordinária, isso não é verdade. Nossa história foi exatamente igual às outras e, se o livro parece banal, é porque tentei ser o mais fiel possível aos acontecimentos.

Hesitei muito antes de escrevê-lo. Conversei com os amigos que temos em comum e empreendi muitas reflexões. Pensei até em dizer-lhe que estava escrevendo, mas mudei de idéia quando concluí que você faria de tudo para que nossa história não fosse registrada em lugar nenhum e caísse no esquecimento. Então mantive você no escuro e só agora, com o livro no prelo, tenho coragem de dizer que ele existe. Ele é dedicado a você e, caso veja isso com ternura ou preocupação, pouco importa. Ele virá, impacientemente como Bruce Lee.

O livro vai acabar sendo nosso filho. Vamos projetar nele todas as nossas raivas e frustrações, nossos medos. Vamos acabar odiando-o como nos odiamos depois que nossa história acabou. Acho que não vai vender. Não creio que o mundo precise de (ou queira) mais uma história de amor, de mais uma derrota. No final, pensamos que podemos nos redimir contando (ou vivendo, ou assistindo a) uma história de amor, da mesma forma que pensamos que podemos recomeçar tudo ao ter um filho. Aí, tudo são flores. Flores artificiais, mas flores. Não demora muito e a redenção evapora. O livro azeda, e o filho cai na rotina, vira vítima de nossos vícios ao invés de redentor deles. Em pouco tempo, o livro cai na mesmice, nas mesmas situações eternamente repetidas. Nossa história rendeu um épico dramático, mas isso também aconteceu com todas as outras histórias. Umas poucas viraram livros e filmes, outras tantas se esvaneceram tão logo os amantes se separaram, mas todas, nem que por um breve momento, adquiriram as dimensões de um épico banal. Também um filho, que por um instante parece o ser mais sublime da Terra, transforma-se com o tempo num índice de nossos erros e vícios. Rapidamente, ele procura ter seu próprio filho para o redimir dos infortúnios herdados, e você termina com filhos e netos de desilusões.

Mas basta de filhos. Estou com um exemplar do livro na mão: gostaria de dá-lo a você. Qual é seu novo endereço? Vai me deixar entrar?