terça-feira, novembro 28, 2006

o brasil na primeira guerra mundial

(do diário de Laurindo de Souza, primeiro-tenente do cruzador "Bahia" na Grande Guerra de 1914.)

15 de outubro de 1918

Os fatos de ontem ainda me colocam de cabelo em pé; creio que metade de minha cabeça está branca a essa hora. Fatos aterradores, os mais atrozes que já vi desde que essa maldita guerra começou, desenrolaram-se diante de meus olhos, como num desses contos de Poe que enche de calafrios o coração...

A moral da tripulação, como eu já havia ressaltado, está em pandarecos. Desde o 20 de junho, quando zarpamos de Fernando de Noronha, a flotilha esperava travar combate aos submarinos alemães que infestam o Atlântico. A princípio, nossos corações possuíam o brio de se bater contra o odioso Kaiser em defesa da paz mundial e de nossa pátria. Eu mesmo havia festejado quando fui nomeado para a tripulação do "Bahia", parte da DNOG (Divisão Naval em Operações de Guerra). O fato de que o valoroso Almirante Frontin está no comando da frota apenas nos enchia de vontade de encontrar logo o inimigo.

A coisa toda começou a degringolar em agosto: enquanto patrulhávamos a costa africana, baseados em Dacar, fomos assaltados por um surto fulminante de gripe espanhola. 176 patrícios nossos fecharam os olhos para nunca mais abrirem; eu mesmo perdi meus amigos de carteado, o Pinduca, o Bolão... negócio muito triste.

Mais triste o fato de que ainda não encontramos nem uma sucata alemã; ocorreu um incidente em julho, quando o tender Belmonte foi supostamente atacado por um submarino, mas após nosso contra-ataque não encontramos nem sinal dele.

A espera pelo combate nos colocava de prontidão durante 24 horas. Cansávamos de lutar contra a gripe, o tédio, a ansiedade; a tensão ameaçava comer-nos vivos. Até que ontem...

O grumete Saldanha foi o primeiro a ver o rastro no mar. Uma massa escura, de reduzidas proporções, rondava o "Bahia". Excitado, o rapaz correu para a ponte de comando e deu o alarma. Logo, todos nós estávamos no deque, acompanhando com os olhos o rastro escuro de espuma que rodeava a frota, sumia e logo reaparecia. Sua forma e velocidade só poderia significar uma coisa: o periscópio de um submarino! Tínhamos encontrado nossa presa!

O capitão do "Bahia" não esperou que o rapaz das comunicações transmitisse a novidade para o Almirante Frontin, que estava visitando outro navio. Aproveitando que os canhões estavam de prontidão, mandou que atirassem na direção do rastro imediatamente. Logo, o cruzador pulsava com os estrondos dos canhões; o mar transformou-se numa massa de espuma dançante. Animado, o cruzador "Rio Grande do Sul" também passou a perseguir o rastro com a fúria das armas. O rastro desapareceu diante de nós; no mar, apenas eram visíveis as torrentes de água e espuma que se projetavam metros de altura, para cair sobre nós como uma ducha morna de chumbo.

Após cinco minutos que pareceram uma eternidade, a salva cessou. Pouco a pouco, a quietude do oceano retornou para nossos pobres ouvidos, restando do ataque apenas um zumbido. Seguramos a respiração e ficamos com os olhos grudados no último ponto onde o rastro havia sido visto, esperando que os destroços do submarino alemão, a primeira vitória da grandiosa frota brasileira, emergissem...

Pouco depois, um objeto escuro e reluzente surgiu das profundezas e passou a flutuar nas ondas. Outro veio logo a acompanhá-lo. E outro; mais outro. Urramos de felicidade no deque, como se tivéssemos vencido a guerra.

Aos poucos, no entanto, fomos percebendo a terrível realidade. Outros pedaços reluzentes vieram se juntar aos que flutuavam, que já formavam uma dúzia. O navio aproximou-se dos "destroços", e pudemos ver que não eram feitos de metal ou qualquer outro material produzido pelo homem. Pareciam - e eram, verdadeiramente - animais; toninhas, mais especificamente. Pedaços de golfinho coalhavam o mar ao redor da frota, e a tripulação observava os pobres cetáceos em silêncio, mesmerizada...

Não consegui dormir ontem, e não creio que o conseguirei nos dias que virão. Estou pensando em desertar no momento em que pisarmos em Gibraltar.

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(este diário é baseado em fatos reais)

segunda-feira, novembro 27, 2006

ressaca

Acordei numa cama estranha
ao lado de uma moça desconhecida.
Ela despertou, olhou pra mim
e começou a gritar por sua vida.

Caí no chão em cima
de uma garrafa vazia.
Saí correndo com os cacos na barriga,
com a moça atirando um abajur,
com um cachorro que queria morder meu saco,
com um cara que saiu do quarto ao lado.

Saí do apartamento de cuecas,
pulei doze lances de escada,
quando dei por mim, estava na calçada
numa rua que nem sabia o nome.
Dei o pinote quando vi o cachorro.

Vi marcas de batom no meu pescoço,
ouvi um apito e um guarda veio em meu encalço,
uma velhinha deu com a bolsa no meu baço,
o sinal abriu e um carro me deu um abraço.

Acordei com o cachorro no meu saco,
com o cara me socando,
com o policial me chutando,
com a moça me mordendo,
com a velha me bolsando.

Eu prometo
que é a última vez
que
eu
be
bo.

piratas do tietê

Daria até pra viver sem ler Laerte, mas não teria a menor graça.

domingo, novembro 26, 2006

sono

O Jorge é uma graça. Aliás; graça, não. Palavra cretina, brega. Eu gosto do Jorge mas não tenho a imaginação dele para falar coisas bonitas. Uso o pouco da criatividade que tenho no trabalho, pra resolver problemas sérios. No amor, sou simples. Não sou de recitar poemas e ficar de chamego no sofá da sala. Sou pragmática. Então eu gosto do Jorge e de estar ao seu lado. É por aí.

A separação veio depois da única vez que ele dormiu aqui em casa. Até lá, tudo eram rosas. Depois de sairmos cada um de seu respectivo expediente – eu sou professora e ele é enfermeiro -, nos encontrávamos em meu apartamento e transávamos até o começo da manhã. Cinco, seis horas direto, quase todos os dias. Fantástico. O Jorge tocava em mim, me beijava, com uma segurança que me deixava mole. Não importava o estresse com os meninos da 4ª. série, jogando bolinha de papel e me insultando quando eu virava as costas: quando estava com ele, minha alma tomava um bom banho e as perturbações do dia escorriam como água suja. Ele me preenchia de um jeito... eu olhava seus olhos – e ele sorria. E eu sorria. Pulávamos, gozávamos, ríamos a noite toda. De manhã, eu caminhava insone para o trabalho, dolorida e feliz.

Não imaginávamos que as coisas pudessem melhorar. Era verdade: elas só pioraram.

Depois de várias semanas do Jorge saindo, no meio da madrugada, pra voltar à sua casa, perguntei se ele não gostaria de dormir comigo.

Ele ficou sério. Disse que não podia, infelizmente. Que não estava pronto para esse tipo de intimidade. Normalmente eu ficaria incomodada, mas a noite havia sido tão boa e ele havia dito aquilo de forma tão gentil que não me esquentei. Beijou-me e saiu.

No entanto, nas noites seguidas eu insisti no assunto. Fiquei martelando como ele poderia me comer por meses e depois dizer que não éramos íntimos o suficiente para que ele dormisse lá em casa. Não era só sexo, afinal de contas – saíamos às vezes e nos divertíamos muito. Ainda assim, ele continuou nas negativas.

- Não trouxe escova de dentes, toalha, gilete, e eu preciso me barbear quando acordo. – era uma de suas desculpas.

- Hoje não, amanhã. – era outra.

- Não quero te incomodar. – dizia, calçando o sapato com os olhos fugidios.

- Não posso.

Fitava meu rosto, muito sério. Eu pensava que havia outra mulher, que ele estava em regime semi-aberto e tinha que voltar para a prisão antes de dormir, que ele peidava insuportavelmente, que tinha que regar as plantas e sentia vergonha de me contar. Ou que sentia medo de mim, do que poderíamos nos tornar. Hoje, ele dormiria em minha casa. Amanhã, traria suas roupas. Pouco a pouco, nossas vidas se entrelaçariam e ele perderia a independência que prezava tanto. Mas ainda assim não fazia sentido: o medo de intimidade só se manifestava na ocasião em que eu lhe pedia para que ficasse. No mais, convivíamos normalmente, com carinho e cumplicidade. Sentia-me frustrada por realizar tantas coisas plenas a seu lado e não conseguir concretizar aquele desejo tão banal.

- Depois, - ele me falou, uma noite – eu conto.

Contou-me. Confessou que gostava de mim e ansiava voltar ao meu lado quando não estávamos juntos. Mas carregava um segredo que o impedia de adormecer comigo.

Disse-me que sonhava.

- Tem pesadelos?

- Pior. Delírios, horríveis, sufocantes, não consigo descrever. – falava baixinho, em lagrimas. – Não me lembro de nada na manhã seguinte. Por isso durmo pouco. Instintivamente, procuro acordar logo para não passar por isso. E é todo dia.

- Já foi ao médico?

- Muitos, mas ninguém consegue descobrir o que é. Já tentei de tudo.

Chorava. Tive pena. Reclamei porque ele não falara aquilo antes, que ter problemas durante o sono era um distúrbio normal e que eu o ajudaria. Eu, a heroína.

- Não é tudo. – respondeu – Também falo coisas quando estou dormindo. Coisas pavorosas.

Que coisas?

Tremia. Suas mãos suadas agarravam as minhas.

- Nenhuma mulher jamais conseguiu dormir comigo. Desde adolescente, meus pais colocaram isolamento acústico no meu quarto e trancavam a porta para que ninguém ouvisse.

Que coisas?

- Não posso dizer. – e explodiu em soluços.

Eu o abracei. Senti medo, mas também alivio. Estava próxima a ele e decidi ajudá-lo.

Depois de muita conversa, convenci-o a passar ao menos uma noite aqui em casa.

- Você não vai me atacar, não é?

- Não, – disse – não é assim. Mal me mexo. Só falo.

Não transamos naquela noite. Estavam os dois apreensivos: ele, pelo efeito que causava nas mulheres após adormecer; eu, pelo desconhecido.

Demorei a dormir. Minha última visão foi Jorge com os olhos arregalados, fitando o teto.


Eu estava na praia; caminhava entre as ruínas de uma casa abandonada e o mar, que, refletindo o sol ao entardecer, parecia sangue. Súbito, fui puxada de volta à consciência. Abri os olhos no escuro.

Jorge pronunciava algumas palavras com a voz grave e rude dos que acabaram de acordar. Sabia que isto aconteceria e não me surpreendi. O modo como a voz era inteligível e articulado, contudo, fez-me duvidar se estava dormindo. Sua respiração pesada e o tom inumano, sonâmbulo com que falava convenceram-me que sim.

Gradualmente, livrei-me dos restos de sono e concentrei-me para escutar as palavras. Elas entraram pelo meu ouvido e, navegando pelo corpo, agarraram e espremeram meu coração. Senti-me tonta, agarrada à colcha para não enlouquecer.

Lágrimas brotaram-me dos olhos, e bagas de suor escaparam-me pelos poros. Meu estômago contorcia-se a cada frase, a cada insulto balbuciado por Jorge. O homem doce que eu conhecia estava morto.

Segurei-me para não sacudi-lo e tirá-lo daquele transe. Havia lido que os sonâmbulos podem morrer instantaneamente se forem acordados. Mas também não conseguia permanecer ali: levantei-me e fui para a cozinha, mas as palavras de Jorge continuaram a assombrar. Eu entendera errado? Como alguém seria capaz de imaginar aquilo?

Como alguém carinhoso como ele poderia transformar-se numa aberração à noite? As coisas que ele dizia...

Bebi um copo d’água. Aninhei meu rosto entre as mãos e chorei. Por alguns instantes, senti o juízo me abandonar.

As coisas...


No outro dia, Jorge nada disse. Apenas olhou para mim quando, em minha inútil tentativa de fingir que nada acontecera, eu disse que ele havia permanecido em silêncio a noite toda.

Vestiu-se lentamente. Tomou o café; deu-me um beijo seco no rosto e avisou que chegaria tarde. Nunca mais o vi.

O que mais me assustara foi o tom com que ele falou seu discurso horrendo.

Calmo, lúcido, objetivo – como se estivesse acordado, brincando com meu desespero. Usando-me de cobaia num experimento de tolerância.

Às vezes imagino se o Jorge verdadeiro não seria o Jorge inconsciente, destinado a inocular seu veneno sobre a humanidade, enquanto o Jorge que eu amava seria o alter-ego, a fantasia.

De qualquer maneira, tento não gastar meu tempo pensando nessas coisas. Deixo a imaginação para o trabalho.

sábado, novembro 25, 2006

ano e meio

Hoje faz um ano e meio que nos separamos. Quando penso nisso, só me lembro de João Gilberto cantando “tá fazendo um ano e meio, amor... que nosso lar... desmoronou” (perdoe o desafino). Acho que estou bebendo agora pra comemorar.

“Comemorar o quê?!”, dirão. “Não doeu, não foi terrível? Quantas vezes nesse tempo você não a imaginou em seus braços? Por quantos meses mais você irá se recriminar de haver terminado as coisas do jeito mais doloroso possível? O que há para se comemorar nisso?”

É verdade. Mas, mesmo com a depressão e o remorso, sempre pensei e ainda penso que tomei a decisão correta. Se hoje posso viver com sua memória de modo relativamente sereno, é porque tomei decisões que, mesmo precipitadas, saíram do fundo de minhas entranhas.

Pouco a pouco, paro de repisar as circunstâncias do fim de caso.

Os dias de ressentimento tornaram-se horas, minutos e, finalmente, instantes de melancolia concentrada. Seu rosto, que tanto me feria nesse meio tempo, agora não possui mais os detalhes e as feições dos quais eu me recordava tão bem. Em algum tempo não passará de uma mancha branca com o mero esboço dos olhos e da boca. O sexo se transmutará em outros gozos, novos cheiros e texturas, recriando o tecido de seus gemidos em infinitas combinações.
Sua voz rouca e doce se confundirá com a miríade de outras vozes que, agora, ocupam meu pensamento. Assim é o movimento do mundo.

E pensar que, na minha terna ingenuidade, eu cheguei a suspeitar que alguns amores haviam nascido para durarem para sempre...

assim começa

Sabe o quê? Vou parar de insistir. Muita coisa aconteceu. Com tantos mal-entendidos, tantas coincidências ingratas, eu comecei a acreditar no destino e o tempo correu pra trás. Ela parece que está ali, por um momento (estou falando da felicidade, por favor), um cristal tão frágil, para dissipar-se no instante seguinte, e eu continuo andando com minhas velhas companheiras. E, em outro mal-entendido / confusão de horário / imprevisto, Isabel Evangelista some das minhas vistas apenas para continuar na memória: inalcançável.

Ontem, ela ligou. Não pude discernir muito o que dizia: compreendi apenas que estava bêbada e que sentia muito por nenhum de nossos encontros ter se concretizado. Percebi que ela sentia o mesmo que eu; que também se cansava das escrotices do destino.

Desde que nos vimos pela primeira e derradeira vez na casa de uma amiga em comum, rolou uma empatia mútua. Sincronicidade de tempos. Trocamos algumas palavras amistosas e medimo-nos com o olhar. Pude imaginá-la fazendo uma série de coisas, e não duvido que ela tenha pensado o mesmo. Anotamos os telefones e partimos, com a certeza de nos reencontrarmos. Mas nunca conseguimos.

No primeiro encontro, esperei duas horas no café. Ela ligou e disse que a avó havia sido internada. Desculpava-se. Normal.

Na semana seguinte, o pneu do meu carro furou a caminho do cinema. Quando cheguei, ela já tinha partido.

Pequenos acidentes e contratempos interpunham-se entre nós. Uma vez, descobri que ela havia estado no bar poucos minutos antes de eu chegar. Outro dia, no exato momento em que ela saía de casa para me ver, uma turbina de avião caiu em cima de seu prédio. Não estou brincando! Deu no jornal.

E eu, tão descrente de religiões e dos livros nos quais os deuses escrevem nossos nomes, gradualmente passei a crer na teoria do caos e em feng-shui.

Evangelista, que aparentemente estava fadada a tornar-se mais uma das muitas promessas feitas e não-cumpridas em minha vida, virou meu pesadelo: aquela que deveria ser e não foi.

Em nossos e-mails e telefonemas às altas horas da madrugada, eu sentia que ela pensava o mesmo e procurava desesperadamente um caminho de trair o destino. Aceitei o desafio, mas perdemos.

Quando eu saía rumo à sua casa, no horário em que eu estava certo de que a encontraria, acontecia alguma fatalidade: a avó de novo, uma emergência no trabalho, uma infecção estomacal. Um bêbado chegou a invadir a casa dela com o carro - e olha que ela mora no terceiro andar!

Eu consideraria tudo isso lorotas e a mandaria ao inferno caso não acontecesse o mesmo tipo de coisa comigo. E Isabela, um belo dia, transformou-se em meu Cristo particular: meu dogma. Eu nunca mais a vira, nunca a amara fisicamente, mas não era necessário; eu acreditava piamente em sua existência.

Não sou louco: juro que a vi. Por poucos segundos, digo. Ela atravessou a rua e desapareceu na esquina. Subiu no ônibus. Saiu apressada do cinema. Atendeu-me na farmácia. Fez meu imposto de renda.

Porque, faz tanto tempo desde que a vi, há tantos anos, que hoje todas as mulheres do mundo possuem o rosto de Isabela. Alguns dos homens, inclusive.

*

Ontem, ela ligou. Disse que estava bêbada e que sentia muito por nunca termos conseguido nos encontrar. Esses contatos já haviam virado rotina. Tudo bem. Eu a ouvi por algum tempo até ela sussurrar um “boa noite” torto e desligar. Minha querida Cristo.

Eu estava numa situação confortável. Poderia passar o resto da vida medindo minhas mulheres por Isabela. Por aquela que amei e nunca. Por aquela que esperei e me esperou. Pela minha amante de quartos separados.

Mas aí lembrei daquela do Ulysses Guimarães (devia ter algo de muito estranho naquele chopp pra eu me lembrar do Ulysses): ele disse que, se esse negócio de “e se”, “e se” funcionasse, Paris caberia no fundo de uma garrafa.

“E se...”

Mas agora chega.

sábado, novembro 18, 2006

café

Brasil, década de 30 do século XIX. Apoiado por grandes fazendeiros do Vale do Paraíba, em São Paulo, e pela crise da produção mineradora no final do século anterior, o café torna-se o principal produto de exportação do país e o maior da economia do Império. A sementinha vermelha, enviada às centenas de toneladas para a Europa e os Estados Unidos, consolidou a riqueza dos cafeicultores do Sudeste e impulsionou a urbanização e a infra-estrutura de transportes, além de garantir capitais para o início do processo de industrialização na aurora do século XX. O café, às vezes, é mais do que café.

Herdeiros dessa longa tradição, Viviane e Fulgêncio inauguraram seu “coffee-shop” no ano passado. Situado num canto tranquilo do shopping, o “Good Coffee” tornou-se o xodó e a obsessão do casal. Era seu primeiro grande empreendimento juntos após três anos de noivado. Os pais diziam que, com a loja, nascia o primeiro filho.

A mãe dela, empreendedora frustrada, resumiu com uma ponta de sarcasmo:

- O casamento deles está aí, agora.

Os dois não cabiam em si. Fulgêncio, empolgado, já pensava em deixar o emprego de enfermeiro e trabalhar 24 horas na cafeteria. Planejava expansões, filiais, abriria restaurantes e redes de supermercados. Mais cautelosa, Vivi já se dava por satisfeita se conseguissem pagar as prestações do apartamento em que pretendiam morar. Se muito, também o carro usado.

No dia da inauguração, chamaram ambas as famílias e todos os amigos. Conhecidos elogiaram a iniciativa do casal, afirmando que faltava espírito empreendedor ao povo, a coragem de entrar no jogo capitalista com vias de realizar seu próprio futuro e não esperar que o Estado lhe desse de mamar a vida inteira. É por falta disso, afirmavam, que o país estava na merda.

Fulgênco e Viviane sentiram-se a própria mola propulsora do crescimento e desenvolvimento nacional. Quando chegaram em casa, treparam como dois endemoniados.

A “Good Coffee” rendeu o suficiente para que não fosse necessário investir mais dinheiro, mas não lucrou nada durante os seis primeiros meses.

Ao final do prazo, os telefonemas do banco onde Fulgêncio havia feito o empréstimo ficaram mais frequentes.

Viviane desistiu de trocar os móveis do apartamento alugado onde moravam. Pouco depois, os dois se mudaram para outro alugado, menor.

As conversas sobre o gerenciamento da cafeteria estavam tornando-se cada vez mais acaloradas. Fulgêncio tentava convencer Viviane a tomar outro empréstimo e fazer melhorias na loja enquanto ela queria cortar gastos e despedir uma das funcionárias.

(Dizia que ela era incompetente, mas o que pensava mesmo era que a piranha estava dando em cima de Fulgêncio.)

De enfermeiro e professora, os dois converteram-se em economistas. Sacudiam planilhas de faturamento na cara do outro, disparando metas de planejamento e idéias de marketing. Começaram a dormir em camas separadas.

Quando estavam prestes a vender o ponto e terminar o noivado, uma nova loja de deparamentos abriu ao lado da “Good Coffee”. Seus numerosos funcionários passaram a almoçar e lanchar na cafeteria. O negócio ganhou novo ímpeto.

Espalhou-se o boca a boca. Pedindo um empréstimo aos seus pais, que, a essa altura, já se preocupavam com a sanidade mental da filha, Viviane comprou uma partida de café especial colombiano e roubou as receitas de uma cafeteria concorrente. O faturamento explodiu.

Fulgêncio largou o emprego e negociou a compra do espaço ao lado. Semanas depois, também abriu uma filial em outro shopping próximo.

O sucesso, contudo, não trouxe a serenidade de volta ao casal. Davam-se muito bem nas reuniões de negócios – cada um havia trazido dois sócios para a jogada – e revelaram-se excelentes empresários. Entretanto, após os encontros, voltavam para casa, comiam e dormiam sem falar uma palavra ao outro.

Viviane casou com um dos sócios, amigo que o ex-noivo havia apresentado. Fulgêncio continuou a dormir com a ex-caixa da cafeteria, agora promovida a gerente de estoque.

No mês passado, abriram a décima filial e a primeira fora do país. Já moravam em coberturas separadas e não se encontravam há tempo. Todos os negócios eram agora resolvidos por gerentes e administradores contratados.

Ontem, reencontrei Fulgêncio. Estava pálido, as mãos tremendo. Contou-me que havia ido para uma festa no iate de uma das acionistas da “Good Coffee”.

Depois de surubas e de uma rodada de pó, encontrou-se pensando em Vivi. Saiu do iate de manhã e dirigiu para o shopping, ainda com ela na cabeça.

As lojas abriam. O bafo frio da manhã de São Paulo fazia brotar lágrimas aos olhos e travava-lhe a garganta. Olhou a cidade fria que se delineava sob o sol – cem anos atrás, a poucos quilômetros dali, estendiam-se imensas plantações de café, colhidas por mãos negras e brancas. Pujança do Império; riqueza forte e assombrosa.

Foi até a “Good Coffee”, transformada num megaplex onde se vendia utensílios de cozinha e café de todos os sabores. Pediu um expresso.

Por mais que despejasse açúcar, no entanto, não conseguia livrar-se do gosto acre e amargo que sentia na bebida.