sábado, novembro 18, 2006

café

Brasil, década de 30 do século XIX. Apoiado por grandes fazendeiros do Vale do Paraíba, em São Paulo, e pela crise da produção mineradora no final do século anterior, o café torna-se o principal produto de exportação do país e o maior da economia do Império. A sementinha vermelha, enviada às centenas de toneladas para a Europa e os Estados Unidos, consolidou a riqueza dos cafeicultores do Sudeste e impulsionou a urbanização e a infra-estrutura de transportes, além de garantir capitais para o início do processo de industrialização na aurora do século XX. O café, às vezes, é mais do que café.

Herdeiros dessa longa tradição, Viviane e Fulgêncio inauguraram seu “coffee-shop” no ano passado. Situado num canto tranquilo do shopping, o “Good Coffee” tornou-se o xodó e a obsessão do casal. Era seu primeiro grande empreendimento juntos após três anos de noivado. Os pais diziam que, com a loja, nascia o primeiro filho.

A mãe dela, empreendedora frustrada, resumiu com uma ponta de sarcasmo:

- O casamento deles está aí, agora.

Os dois não cabiam em si. Fulgêncio, empolgado, já pensava em deixar o emprego de enfermeiro e trabalhar 24 horas na cafeteria. Planejava expansões, filiais, abriria restaurantes e redes de supermercados. Mais cautelosa, Vivi já se dava por satisfeita se conseguissem pagar as prestações do apartamento em que pretendiam morar. Se muito, também o carro usado.

No dia da inauguração, chamaram ambas as famílias e todos os amigos. Conhecidos elogiaram a iniciativa do casal, afirmando que faltava espírito empreendedor ao povo, a coragem de entrar no jogo capitalista com vias de realizar seu próprio futuro e não esperar que o Estado lhe desse de mamar a vida inteira. É por falta disso, afirmavam, que o país estava na merda.

Fulgênco e Viviane sentiram-se a própria mola propulsora do crescimento e desenvolvimento nacional. Quando chegaram em casa, treparam como dois endemoniados.

A “Good Coffee” rendeu o suficiente para que não fosse necessário investir mais dinheiro, mas não lucrou nada durante os seis primeiros meses.

Ao final do prazo, os telefonemas do banco onde Fulgêncio havia feito o empréstimo ficaram mais frequentes.

Viviane desistiu de trocar os móveis do apartamento alugado onde moravam. Pouco depois, os dois se mudaram para outro alugado, menor.

As conversas sobre o gerenciamento da cafeteria estavam tornando-se cada vez mais acaloradas. Fulgêncio tentava convencer Viviane a tomar outro empréstimo e fazer melhorias na loja enquanto ela queria cortar gastos e despedir uma das funcionárias.

(Dizia que ela era incompetente, mas o que pensava mesmo era que a piranha estava dando em cima de Fulgêncio.)

De enfermeiro e professora, os dois converteram-se em economistas. Sacudiam planilhas de faturamento na cara do outro, disparando metas de planejamento e idéias de marketing. Começaram a dormir em camas separadas.

Quando estavam prestes a vender o ponto e terminar o noivado, uma nova loja de deparamentos abriu ao lado da “Good Coffee”. Seus numerosos funcionários passaram a almoçar e lanchar na cafeteria. O negócio ganhou novo ímpeto.

Espalhou-se o boca a boca. Pedindo um empréstimo aos seus pais, que, a essa altura, já se preocupavam com a sanidade mental da filha, Viviane comprou uma partida de café especial colombiano e roubou as receitas de uma cafeteria concorrente. O faturamento explodiu.

Fulgêncio largou o emprego e negociou a compra do espaço ao lado. Semanas depois, também abriu uma filial em outro shopping próximo.

O sucesso, contudo, não trouxe a serenidade de volta ao casal. Davam-se muito bem nas reuniões de negócios – cada um havia trazido dois sócios para a jogada – e revelaram-se excelentes empresários. Entretanto, após os encontros, voltavam para casa, comiam e dormiam sem falar uma palavra ao outro.

Viviane casou com um dos sócios, amigo que o ex-noivo havia apresentado. Fulgêncio continuou a dormir com a ex-caixa da cafeteria, agora promovida a gerente de estoque.

No mês passado, abriram a décima filial e a primeira fora do país. Já moravam em coberturas separadas e não se encontravam há tempo. Todos os negócios eram agora resolvidos por gerentes e administradores contratados.

Ontem, reencontrei Fulgêncio. Estava pálido, as mãos tremendo. Contou-me que havia ido para uma festa no iate de uma das acionistas da “Good Coffee”.

Depois de surubas e de uma rodada de pó, encontrou-se pensando em Vivi. Saiu do iate de manhã e dirigiu para o shopping, ainda com ela na cabeça.

As lojas abriam. O bafo frio da manhã de São Paulo fazia brotar lágrimas aos olhos e travava-lhe a garganta. Olhou a cidade fria que se delineava sob o sol – cem anos atrás, a poucos quilômetros dali, estendiam-se imensas plantações de café, colhidas por mãos negras e brancas. Pujança do Império; riqueza forte e assombrosa.

Foi até a “Good Coffee”, transformada num megaplex onde se vendia utensílios de cozinha e café de todos os sabores. Pediu um expresso.

Por mais que despejasse açúcar, no entanto, não conseguia livrar-se do gosto acre e amargo que sentia na bebida.

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