domingo, novembro 26, 2006

sono

O Jorge é uma graça. Aliás; graça, não. Palavra cretina, brega. Eu gosto do Jorge mas não tenho a imaginação dele para falar coisas bonitas. Uso o pouco da criatividade que tenho no trabalho, pra resolver problemas sérios. No amor, sou simples. Não sou de recitar poemas e ficar de chamego no sofá da sala. Sou pragmática. Então eu gosto do Jorge e de estar ao seu lado. É por aí.

A separação veio depois da única vez que ele dormiu aqui em casa. Até lá, tudo eram rosas. Depois de sairmos cada um de seu respectivo expediente – eu sou professora e ele é enfermeiro -, nos encontrávamos em meu apartamento e transávamos até o começo da manhã. Cinco, seis horas direto, quase todos os dias. Fantástico. O Jorge tocava em mim, me beijava, com uma segurança que me deixava mole. Não importava o estresse com os meninos da 4ª. série, jogando bolinha de papel e me insultando quando eu virava as costas: quando estava com ele, minha alma tomava um bom banho e as perturbações do dia escorriam como água suja. Ele me preenchia de um jeito... eu olhava seus olhos – e ele sorria. E eu sorria. Pulávamos, gozávamos, ríamos a noite toda. De manhã, eu caminhava insone para o trabalho, dolorida e feliz.

Não imaginávamos que as coisas pudessem melhorar. Era verdade: elas só pioraram.

Depois de várias semanas do Jorge saindo, no meio da madrugada, pra voltar à sua casa, perguntei se ele não gostaria de dormir comigo.

Ele ficou sério. Disse que não podia, infelizmente. Que não estava pronto para esse tipo de intimidade. Normalmente eu ficaria incomodada, mas a noite havia sido tão boa e ele havia dito aquilo de forma tão gentil que não me esquentei. Beijou-me e saiu.

No entanto, nas noites seguidas eu insisti no assunto. Fiquei martelando como ele poderia me comer por meses e depois dizer que não éramos íntimos o suficiente para que ele dormisse lá em casa. Não era só sexo, afinal de contas – saíamos às vezes e nos divertíamos muito. Ainda assim, ele continuou nas negativas.

- Não trouxe escova de dentes, toalha, gilete, e eu preciso me barbear quando acordo. – era uma de suas desculpas.

- Hoje não, amanhã. – era outra.

- Não quero te incomodar. – dizia, calçando o sapato com os olhos fugidios.

- Não posso.

Fitava meu rosto, muito sério. Eu pensava que havia outra mulher, que ele estava em regime semi-aberto e tinha que voltar para a prisão antes de dormir, que ele peidava insuportavelmente, que tinha que regar as plantas e sentia vergonha de me contar. Ou que sentia medo de mim, do que poderíamos nos tornar. Hoje, ele dormiria em minha casa. Amanhã, traria suas roupas. Pouco a pouco, nossas vidas se entrelaçariam e ele perderia a independência que prezava tanto. Mas ainda assim não fazia sentido: o medo de intimidade só se manifestava na ocasião em que eu lhe pedia para que ficasse. No mais, convivíamos normalmente, com carinho e cumplicidade. Sentia-me frustrada por realizar tantas coisas plenas a seu lado e não conseguir concretizar aquele desejo tão banal.

- Depois, - ele me falou, uma noite – eu conto.

Contou-me. Confessou que gostava de mim e ansiava voltar ao meu lado quando não estávamos juntos. Mas carregava um segredo que o impedia de adormecer comigo.

Disse-me que sonhava.

- Tem pesadelos?

- Pior. Delírios, horríveis, sufocantes, não consigo descrever. – falava baixinho, em lagrimas. – Não me lembro de nada na manhã seguinte. Por isso durmo pouco. Instintivamente, procuro acordar logo para não passar por isso. E é todo dia.

- Já foi ao médico?

- Muitos, mas ninguém consegue descobrir o que é. Já tentei de tudo.

Chorava. Tive pena. Reclamei porque ele não falara aquilo antes, que ter problemas durante o sono era um distúrbio normal e que eu o ajudaria. Eu, a heroína.

- Não é tudo. – respondeu – Também falo coisas quando estou dormindo. Coisas pavorosas.

Que coisas?

Tremia. Suas mãos suadas agarravam as minhas.

- Nenhuma mulher jamais conseguiu dormir comigo. Desde adolescente, meus pais colocaram isolamento acústico no meu quarto e trancavam a porta para que ninguém ouvisse.

Que coisas?

- Não posso dizer. – e explodiu em soluços.

Eu o abracei. Senti medo, mas também alivio. Estava próxima a ele e decidi ajudá-lo.

Depois de muita conversa, convenci-o a passar ao menos uma noite aqui em casa.

- Você não vai me atacar, não é?

- Não, – disse – não é assim. Mal me mexo. Só falo.

Não transamos naquela noite. Estavam os dois apreensivos: ele, pelo efeito que causava nas mulheres após adormecer; eu, pelo desconhecido.

Demorei a dormir. Minha última visão foi Jorge com os olhos arregalados, fitando o teto.


Eu estava na praia; caminhava entre as ruínas de uma casa abandonada e o mar, que, refletindo o sol ao entardecer, parecia sangue. Súbito, fui puxada de volta à consciência. Abri os olhos no escuro.

Jorge pronunciava algumas palavras com a voz grave e rude dos que acabaram de acordar. Sabia que isto aconteceria e não me surpreendi. O modo como a voz era inteligível e articulado, contudo, fez-me duvidar se estava dormindo. Sua respiração pesada e o tom inumano, sonâmbulo com que falava convenceram-me que sim.

Gradualmente, livrei-me dos restos de sono e concentrei-me para escutar as palavras. Elas entraram pelo meu ouvido e, navegando pelo corpo, agarraram e espremeram meu coração. Senti-me tonta, agarrada à colcha para não enlouquecer.

Lágrimas brotaram-me dos olhos, e bagas de suor escaparam-me pelos poros. Meu estômago contorcia-se a cada frase, a cada insulto balbuciado por Jorge. O homem doce que eu conhecia estava morto.

Segurei-me para não sacudi-lo e tirá-lo daquele transe. Havia lido que os sonâmbulos podem morrer instantaneamente se forem acordados. Mas também não conseguia permanecer ali: levantei-me e fui para a cozinha, mas as palavras de Jorge continuaram a assombrar. Eu entendera errado? Como alguém seria capaz de imaginar aquilo?

Como alguém carinhoso como ele poderia transformar-se numa aberração à noite? As coisas que ele dizia...

Bebi um copo d’água. Aninhei meu rosto entre as mãos e chorei. Por alguns instantes, senti o juízo me abandonar.

As coisas...


No outro dia, Jorge nada disse. Apenas olhou para mim quando, em minha inútil tentativa de fingir que nada acontecera, eu disse que ele havia permanecido em silêncio a noite toda.

Vestiu-se lentamente. Tomou o café; deu-me um beijo seco no rosto e avisou que chegaria tarde. Nunca mais o vi.

O que mais me assustara foi o tom com que ele falou seu discurso horrendo.

Calmo, lúcido, objetivo – como se estivesse acordado, brincando com meu desespero. Usando-me de cobaia num experimento de tolerância.

Às vezes imagino se o Jorge verdadeiro não seria o Jorge inconsciente, destinado a inocular seu veneno sobre a humanidade, enquanto o Jorge que eu amava seria o alter-ego, a fantasia.

De qualquer maneira, tento não gastar meu tempo pensando nessas coisas. Deixo a imaginação para o trabalho.

Um comentário:

Stephanie disse...

é muito bom ler você outra vez...

teve um filósofo - não lembro qual - que dizia que se um pobre dormisse metade do dia sonhando que era nobre, jamais saberia distinguir entre o sonho e o real.

a merda é: há por mais que se tente esconder certas coisas, em algum momento elas transbordam...

beijos!