domingo, dezembro 31, 2006
fim de ano (3)
sexta-feira, dezembro 29, 2006
traição
- Opa! Obrigado.
Ela molhou o dedo nos lábios e esfregou meu colarinho. Acho que uma semana de encontros com ela não me dariam a intimidade instantânea daquele momento: rapidamente senti seu cheiro e seu suor, vi a forma alveolada dos dentes, a minúscula falha na orelha. Nunca tínhamos nos falado antes, mas eu já estava com um pouco de sua saliva em mim e o relógio marcava apenas oito e meia. Será que eu conseguia ver que as coisas não iriam parar por ali?
Entabulamos. Era Cecília, fazia medicina e era muito amiga da namorada de meu irmão. Conversávamos sobre o Mauro quando minha namorada voltou do banheiro. Imediatamente, ela interpôs-se entre Cecília e eu, agarrou meu braço e me deu um beijo.
Apagando o sorriso e sem outra palavra, Cecília meneou a cabeça em minha direção e partiu.
A três quarteirões de onde moro existe um cineminha de arte. Todo o pessoal universitário, artistas e desocupados em geral vão lá assistir ao último filme independente americano ou a alguma porcaria francesa. Vou duas vezes por semana porque é barato e o ar-condicionado é forte.
Duas semanas depois da festa, encontrei Cecília. Lembrei-me de que já a tinha visto no cinema algumas vezes. Estava acompanhada da namorada do Mauro.
Fiquei com as duas, conversando animadamente. Ela adorava filmes, então eu menti e disse que também gostava, que eu lia tudo que me caía nas mãos sobre Bergman, Fellini, Kubrick, que eu gastava meu salário de estagiário no jornal todinho em aluguel de fitas. Ela perguntou de minha namorada (porque mulheres gostam de entrar nesses joguinhos?). Disse-lhe que ela não gostava desse tipo de filme.
Quando minha cunhada foi comprar pipoca, roubei o celular da mão de Cecília e digitei meu telefone. Disse que, quando quisesse falar sobre cinema, era só ligar.
- Só se for pra conversar sobre cinema mudo. – ela respondeu na bucha. Franzi a testa, pensei um pouquinho e ri.
Entramos na sala.
* *
Cecília chegou atrasada no café. Pediu desculpas e depois pediu mais desculpas por ter adiado tanto o encontro: sabe como é, provas, exames... disse que Mauro era médico e que eu a entenderia.
- É, medicina é fogo. – respondi.
Pausa.
- Sua namorada não vai se importar de estarmos aqui?
Outra pausa.
- Provavelmente. Você quer ir embora?
- Não, mas também não quero causar problemas.
- Problema nenhum. Não estamos fazendo nada de mais, não é?
- Acho que não.
Sorri, e ela sorriu de volta. Em frente ao café, alguns meninos corriam de skate, aproveitando os últimos raios da tarde.
- Quer dizer, se eu pegasse na sua mão, desse um beijo e começasse a falar coisas bonitas pra você, talvez isso fosse um pouco errado. Mas não estamos fazendo nada disso.
Ela concordou.
- E ainda isso depende do ponto de vista. – arrematei. Sua mão segurando a xícara tremeu um pouco.
- Não quero causar problema. – murmurou.
Tão lindo, o rosto. Face de mulher; traços fortes, delicados, um sorriso cheio, um corpo esperto. Ela podia estalar os dedos que eu ficaria ao seu lado pelo tempo que quisesse. Nós nos queríamos, e não havia nada de errado nisso.
Ainda assim, ela desviava o olhar.
- Vamos fazer o seguinte? – falei de repente. – Vamos ficar cinco minutos em silêncio. Cinco minutos. Depois, se a gente estiver mais relaxado, podemos conversar. Se não, vamos embora e ninguém fica magoado.
Ela riu nervosa. Olhou para mim como se eu fosse um bicho muito especial e assentiu com a cabeça.
- Certo.
Calamo-nos. Ao redor da praça, os meninos corriam de skate pelo asfalto.
terça-feira, dezembro 26, 2006
amigos
Gosto dos dois. São bons amigos: ele fez parte da minha turma de faculdade, e ela começou a namorá-lo na minha festa de noivado (o meu finado noivado...), há três anos. Não há oportunidade em que nos encontremos para que eles não me encham de abraços e palavras afetuosas. Eu, em troca, ofereço-lhes os ingressos de cinema e os brindes que aparecem no meu trabalho. Saímos uma vez a cada dois, três meses, bebemos um vinho, papeamos sobre as dificuldades dos trinta anos. São legais. Quer dizer, não são meus amigos mais próximos, mas podemos nos chamar de “amigos” sem constrangimento algum.
- Desculpe. – sussurra Tibúrcio, assim que vê minha hesitação. – Foi totalmente inconveniente, terrível...
- Esqueça tudo o que dissemos. – ele pede, em vão.
- Pelo amor de Deus, fale alguma coisa. – ele suplica. Percebo que estive com os olhos arregalados e calado por quase um minuto.
Por outro lado, são meus amigos. Não há nada de errado no que me pediram; ao contrário, denota um grau de confiança que eu mesmo não concedo a ninguém. Foi um pedido muito doce, sincero. Subitamente, sinto-me um palerma por não aquiescer. E porque não?
- Claro que eu aceito. – falo de repente, uma oitava acima do normal. – Claro que sim. É uma honra.
O rosto dos dois se ilumina. Diana deixa escapar um suspiro, e sinto um odor azedo de ovos alcançar meu nariz. Esforço-me para permanecer sorrindo. Tiburcio quase dá um pulo:
- Que bom! Que bom, que bom! Você não vai se arrepender. Vai ser muito legal. – ele pega um papel do bolso e o coloca em minha mão. – Aqui está nosso endereço. Sexta à noite está bom pra você?
- Está ótimo. – o sorriso congela em meu rosto.
Ele aperta minha mão, profundamente agradecido. Depois, diz que eu provavelmente estou constrangido e que não querem incomodar-me mais. Eles se encarregarão de tudo. Sexta às oito da noite, então, tudo bem? Ótimo.
Antes dos dois partirem, ela vira para mim e pisca.
Amigos.
quinta-feira, dezembro 21, 2006
selvageria
Ela se aproxima lentamente, medindo cada passo como uma atriz em sua grande performance. O copo em sua mão parece uma pluma, o vestido leve que envolve seu corpo parece uma pluma, ela parece uma pluma flutuando em meio às pessoas da festa, mas estou pouco me lixando. Talvez antes, antes de Clara ter me deixado, quando eu era bem-humorado e não bebia tanto, talvez aí eu encontrasse a vontade necessária para flertar com uma bela mulher. Mas antes, como alguém disse, já foi, e o que é agora não é nada bonito. Seu rosto, que antes me hipnotizaria com sua simetria, hoje é uma pelanca esperando para acontecer. As pernas grossas e torneadas para mim parecem os cambitos tortos de um goleiro. Cerro a cara e desvio o olhar quando ela chega perto da minha cadeira.
- Oi. - sussurra, allego molto troppo. Voz grave, linda.
Grunho.
- Você não é o irmão do dono da casa? - ela pergunta, sentando na cadeira ao lado. Tenho vontade de suspendê-la e atirá-la de volta para os convidados. Ela parece gentil, o que aumenta minha indisposição.
- Eu tenho esse suspeito privilégio. - murmuro, e ela ri.
- Por quê "suspeito"? - respiro fundo, ainda sem olhar. Ignoro a pergunta, mas ela insiste:
- E fecha logo essa boca que você está com um puta de um bafo.
quinta-feira, dezembro 14, 2006
(2)
segunda-feira, dezembro 11, 2006
partido
- Hã? Oi...?
- Não, fique deitada. Eu já ia chamar a ambulância.
- Eu estou bem... Quem é você?
- Te encontrei largada no meio da rua! Desculpa ter te trazido pra cá, mas é que eu moro perto e fiquei com medo de te passarem por cima. Eu sei que não é pra mexer em vítima de acidente, mas não dava pra te deixar lá. Atropelaram você?
- Não sei.
- Fica deitada. Você está pálida!
- Estou bem.
- Tá sentindo dor?
- Não... não estou sentindo nada.
- Ai, caramba. Peraí, deixa eu ligar pra ambulância...
- Não estou sentindo nada.
- Alô? Pombas! Não era 193?
- Esqueça isso. Fica comigo.
- Mas eu tenho que chamar um médico! Eu chamaria minha namorada, mas ela tá viajando. Está um baita frio lá fora. Você tá com frio? Quer um cobertor?
- Não estou sentindo nada.
- Tá, tá, ok. Deixa eu dar uma olhada em você... tá doendo? Aqui?
- Não.
- Parece que você não quebrou nada. Mas seu braço está branco! Seu rosto também!
- Calma. Não gosto de gente gritando.
- Dá pra ver as veias no seu braço, olha só!
- Senta.
- Ok, ok, fica calma... cacete, ninguém atende!
- Você tem um rosto bonito.
- ´Brigado. Você também. PORRA! Caiu a ligação de novo!
- Pega no meu pulso, por favor.
- Tá. PUTZ, seu braço tá gelado!
- Você sente minha pulsação?
- Peraí... não. Não estou sentindo, não! Ai, caramba...
- Pega aqui no meu peito. Sente meu coração.
- Opa, licença. Tá frio.
- Sente algo? Encosta o ouvido.
- Hmmm...
- E?
- Não estou sentindo nada.
- Está vendo? Minha mão está ficando roxa, escurecendo. Não sinto dor, nem frio, nem nada. Não consigo pensar em mais nada além do que estou vendo.
- Fica calma.
- Estou calmíssima. A lâmpada da sua sala está muito forte pra mim; acho que isso significa que minhas pupilas não estão mais contraindo. Vê? As unhas já estão pretas. Minhas pernas estão começando a endurecer.
- Eu vou pegar um copo d´água pra você, ok?
- Não. Fica comigo. Por favor.
- Espera, eu já volto!
- Meu corpo está ficando inchado; antes, ele abria os poros quando precisava expelir água. Mas os poros não abrem mais, e a água fica acumulada no corpo.
- Estou chegando!
- Eu pedi pra você ficar, mas você não quis.
- Pelo amor de Deus, estou trazendo a água!
- Porque você não ficou...?
- Cheguei!
Mas, quando ele chegou, ela já havia partido.
desenganar
Durante longas horas, todos os dias, ele rejeita seus telefonemas, suas tentativas de contato. Está ocupado demais construindo uma imagem dela, que, jura, permanecerá nos anais da literatura lírica por tempo infinito.
Ela está puta, porque se recusa a transformar-se num totem. Deseja apenas amá-lo.
Hoje, ele se recusa novamente a vê-la. Prefere pensar que está morta: tanto melhor para o poema que tenta escrever, no qual compara o rosto de cadáver que ela ostenta com a alvura das colunas da Acrópole. Deseja torná-la o arquétipo do amor perdido, da paixão irrefreável e absoluta que leu em tantos poemas e que viu em tantos filmes do cinema mudo, que viu expressa nas telas dos mestres e nas esculturas clássicas. Não namora mais uma garota, mas uma idéia, ainda que essa idéia esteja batendo em sua porta nesse exato minuto e tentando chamá-lo de volta à razão abandonando essas intenções estúpidas.
Impávido, ele tampa os ouvidos e busca visualizar sua amada imortal, falecida sobre a tumba de Lenora; morta, morta, morta.
Ela esmurra a porta e castiga a campainha:
- Eu estou aqui, idiota! E não num livro!
Ele agarra o abridor de cartas e aproxima-se da porta trancada, ansioso para dar vazão a sua verve poética.
quinta-feira, dezembro 07, 2006
(1)
com brutal intensidade
em ser outro que não eu.
Vejo-me em outras vestes,
um novo corpo,
um novo rosto,
fazendo coisas desprezíveis e
comendo mulheres que nunca vi.
Quando desperto desses sonhos, imagino
se sou eu naquele momento
ou o outro sonhando de mim.
A cada dia, durmo mais uma hora,
a cada hora, sou menos de mim.
Temo o dia
em que o outro
não constituir mais sonho
e nem lembrança eu for.
quarta-feira, dezembro 06, 2006
maldito rio
barreiras
Relatos de iniciação sexual com cabras e bananeiras não são incomuns nos rincões do País. Alguns dizem que mesmo nas metrópoles o costume ancestral continua.
Cansei de ver gente tratando árvores e plantinhas domésticas com mais afeto e intimidade do que com os próprios familiares. A atenção que os solitários dedicam às suas samambaias ou à mangueira da esquina, abraçando-as, afagando-as o caule e as folhas de maneira quase voluptuosa, não representa nada menos do que um ato de entrega absoluta.
Como se vê, nem mesmo a barreira entre reinos pode impedir a materialização de uma verdadeira paixão. Impressionamo-nos com as mudanças que ocorrem no interior da espécie humana, como a união entre pessoas do mesmo sexo e o gradual reconhecimento da mulher como centro de uma relação estável, quando, na verdade, o advento de tais mudanças já podia ser previsto como passos na evolução da sexualidade desde a Antiguidade.
A maior fronteira a ultrapassar, a que encerra o futuro do sapiens, está em vencer o preconceito que envolve a questão do amor inter-Reinos. Deixemos por um momento o que já está sendo discutido por pessoas melhores do que nós e meditemos um pouco sobre esse conceito revolucionário de amor e comunhão.
Charles L., 45, por exemplo, é um caso raro que prenuncia uma nova era para as relações sociais. Morador de Nazaré da Mata, cidade do interior de Pernambuco, Charles apaixonou-se há três anos por um conjunto de Agaricus bisporus – fungo comestível do filo Basidiomycota vulgarmente conhecido como “champignon”, utilizado no preparo de saladas e massas.
Almas menos elevadas sorririam diante do relacionamento entre um homem e um fungo, mas eu tento analisar o caso sob outro prisma. Charles encontrou o grupo de A. bisporus no sítio de um amigo e, desde então, passa todo o tempo livre de que dispõe em sua companhia. O dono do sítio já tentou expulsá-lo, sem sucesso: a cada investida, Charles apenas abandonava o local para voltar na calada da noite. Ameaças de acabar com os champignons foram respondidas pelo amante com desespero e súplicas. Não vendo outro problema fora a desconfiança e os risos do povo de Nazaré, o amigo resolveu deixar Charles cultivar sua paixão proibida.
O que nos espera? Milhões de pessoas vivem amores secretos com cogumelos, bolores e leveduras, reprimidos pela incompreensão dos que pensam que o amor é reservado somente para o Homo sapiens, que nem sabe o que fazer com ele. Outros escondem seu afeto por protozoários e outros organismos unicelulares, à espera de dias melhores.
Reconhecer o amor inter-Reinos será a maior prova de tolerância que o sapiens pode legar à sua espécie. Duvidar disso é colocar em xeque a própria existência do amor ilimitado e irresoluto que deveria existir entre todos os seres vivos, sejam homens, mulheres e fungos. Quando se vê Charles L. com seus champignons, têm-se um pequeno vislumbre do que significa essa promessa. Olhem para ele...
terça-feira, dezembro 05, 2006
nós

Existem vários tipos: o simples, o clássico, o windsor, o meio-windsor. O de meu pai é um simples. Ele nunca me ensinou a fazer outro tipo, mas, também, eu nunca precisei. O simples é rápido e fácil de fazer, e também acho que papai não sabia fazer outro. Creio que ele se contentava com esse; imagino que, quando ele tinha dezoito anos e havia acordado na manhã do primeiro dia de seu primeiro emprego, meu avô deve ter ensinado o nó simples a ele. Com o tempo, a tradição ficou.
Não sei se quero aprender outro nó: gosto desse. Sei que há muito mais nele do que apenas o trançar e puxar de uma gravata. Penso em meu avô e no tempo em que todo homem tinha que usar gravata até para ir na esquina comprar pão. Esse nó deve ter servido muito bem.
Penso em quanto tempo foi necessário e quantas gravatas passaram pelos pescoços de minha família para que eu estivesse hoje dando esse nó. Ele não é perfeito, longe disso: sempre que o aperto, penso que estou apertando minha própria coleira de vícios herdados no sangue. Às vezes, cogito aprender outro nó e quebrar a ditadura hereditária para que meu filho não carregue os mesmo traços que tantas vezes me parecem tão antiquados.
Mas, quando ainda estou ruminando o assunto, vejo que já enlacei a gravata ao redor do pescoço da maneira habitual. Dou uma olhada no espelho e acabo chegando à conclusão que realmente não há nada de errado com o nó.
Mesmo com suas falhas, é um bom nó, que já serviu a meu pai, meu avô e o pai dele, e que me deixa orgulhoso de tê-lo aprendido.
Não há nada de errado com o nó, mas talvez haja algo de errado comigo.
segunda-feira, dezembro 04, 2006
todos aqueles pequenos suicídios
Viver com Tatiana era cometer pequenos suicídios diariamente, três vezes ao dia, durante muitos dias. Nunca vinha aquela morte verdadeiramente fatal, de deixar estirado no chão, livre do fardo da vida e do bafo da Tati. A dor atacava em pequenas doses, que aleijavam mas não tinham força suficiente para deitar-me à terra, coisa que eu desejava quando se tratava de Tatiana, algo que sempre desejei.
Há muito tempo tenho descrito meus relacionamentos como instáveis, doentios, construídos sobre jogos de palavras, falsidades e traições. Cheguei a afirmar, inclusive, que o amor não passava de um mal disfarçado desejo de auto-flagelação.
Todavia, descobri com Tatiana que também existem namoros verdadeiros, permeados por um amor doce. Têm que existir: afinal de contas, a dor e o sofrimento lancinante que passei ao seu lado só podem apontar para o outro extremo. Apenas assim a redenção do mundo pode acontecer, e há tanta coisa que Tatiana deve redimir. Minhas expectativas, por exemplo.
Minha paciência.
Minha fé em Deus e na anarquia quase absoluta das emoções humanas.
Minha crença no sistema republicano e na eleição de representantes para governar em nome do povo.
Minha lealdade aos amigos e aos princípios que aprendi na faculdade.
Minhas lembranças de outros namoros e outras mulheres. De tão vil, Tatiana corrompeu as memórias de meus primeiros namoricos inocentes, transformando-os em episódios sórdidos de uma adolescência reprimida e pederasta.
Da mesma forma que a existência do mal extremo denota um bem maior a fim de manter o equilíbrio do universo, a ocorrência de Tati demonstra que alguém com um amor profundo por todos os seres vivos habita o outro pólo do globo.
Não que ela represente o pior do que a humanidade pode oferecer, longe disso. Reconheço que eu mesmo fui o culpado de muitas das situações tensas que vivemos. Digo apenas que, caso Deus tenha criado Tatiana, Ele tem muitas explicações a dar.
sábado, dezembro 02, 2006
alta madrugada
Vozes abafadas de um casal. Sussurros: alguma coisa sobre o adiantado da hora, e um pedido para que ela durma no apartamento. Um suspiro. Mais sussurros.
O motorista já se fez ver pelo casal e a mulher, agora, dirige-se para o táxi. O homem a acompanha até a porta. Suspiros, sussurros e soluços. Encobrindo o rosto com um lenço, ela abre a porta de trás e se atira no banco, como se pudesse desaparecer no estofado. Fecha a porta. O homem, permanecendo no meio-fio, observa enquanto o táxi desloca-se lentamente até a esquina, e, daí, ganha o mundo.
Diante do silêncio do motorista, ela murmura o nome de uma rua do outro lado da cidade. Curvando a cabeça, o condutor engata a quinta e dispara pelas avenidas do centro.
Há muito deixou de perceber os edifícios, as cenas de acidente que encontra pelo caminho, os mendigos e os travestis. O que pareceria novidade para um jovem desabituado com a noite lhe é indiferente, comum à sua cidade, a todas as cidades onde já trabalhou; era velho, trabalhara bastante em todo lugar.
Não importa, para ele, as revoluções que tomam lugar no exterior, mas as que ocorrem dentro do carro naquele momento. A mulher, após afastar-se do prédio, começa a chorar compulsivamente. O farol de um carro vindo na direção contrária desvenda-lhe o rosto moreno, belo, com alguns vincos de idade prematura.
Talvez também tivesse viajado muito e conhecido muitas cidades. Talvez – e o pensamento demorou na cabeça do motorista – também tivesse sofrido na mão de outros. Talvez os dois não fossem tão diferentes quanto a distância entre eles no carro parecia demonstrar.
Sua cabeça começa a flutuar para longe dos cruzamentos e dos semáforos; viaja pelo tempo, agora. Vê a primeira esposa na cozinha preparando o café, e os contornos de seu corpo lhe parecem assustadoramente iguais aos da mulher do rosto moreno. Repetindo seus gestos de anos passados, aproxima-se da esposa e mete-lhe um susto que a faz gritar e soltar a xícara. Ri. Ela permanece de costas, enquanto ele lhe acaricia a nuca com os lábios, envolve-a nos braços, levantando a saia lentamente. Ela ri ainda mais. É cedo. Beijam-se.
Quase tarde demais, o motorista escuta os gritos da mulher e vira o volante na direção contrária à dos faróis e ao som das buzinas. Seu pé castiga o freio e o carro dança no asfalto, os pneus gritando.
Segundos depois, o táxi está atravessado na avenida deserta, intacto. Os dois ocupantes respiram pesadamente, sem falar nada. O caminhão invadira a faixa do motorista: não havia sido culpa sua. A mulher o sabe e permanece calada.
Automaticamente, ele emite um tímido pedido de desculpas, engata a primeira e segue a rua. A sensação de ter compartilhado aquela quase-morte com uma bela mulher o enche de orgulho, quase como se tivessem feito amor no banco traseiro.
Ao chegar ao endereço indicado, ele encosta o táxi diante do prédio. Ela pergunta com doçura, já passado o surto de choro e o susto:
- Quanto é?
O motorista, num gesto ensaiado, encosta o braço no assento do passageiro e gira o pescoço apenas o suficiente para que seus olhos manchados de velhice encostem nas jóias castanhas que o fitam:
- Não é nada não, dona. Boa noite.
Ela franze a testa, mas só por um momento. Seus lábios apertados afrouxam-se num sorriso triste; balança a cabeça e, abrindo a porta lentamente, deixa que o motorista veja suas pernas delgadas se esparramando pelo banco até os pés se apoiarem na calçada. Seu peso, mais leve que uma gota de chuva, abandona o carro. Ela bate a porta e encaminha-se para a portaria.
Quando a moça entra, o taxista dá a primeira e parte lentamente. Vai para casa, sorrindo.