quinta-feira, dezembro 21, 2006

selvageria

Nunca hostilizei uma mulher bonita, mas a primeira vez existe pra isso.

Ela se aproxima lentamente, medindo cada passo como uma atriz em sua grande performance. O copo em sua mão parece uma pluma, o vestido leve que envolve seu corpo parece uma pluma, ela parece uma pluma flutuando em meio às pessoas da festa, mas estou pouco me lixando. Talvez antes, antes de Clara ter me deixado, quando eu era bem-humorado e não bebia tanto, talvez aí eu encontrasse a vontade necessária para flertar com uma bela mulher. Mas antes, como alguém disse, já foi, e o que é agora não é nada bonito. Seu rosto, que antes me hipnotizaria com sua simetria, hoje é uma pelanca esperando para acontecer. As pernas grossas e torneadas para mim parecem os cambitos tortos de um goleiro. Cerro a cara e desvio o olhar quando ela chega perto da minha cadeira.

- Oi. - sussurra, allego molto troppo. Voz grave, linda.

Grunho.

- Você não é o irmão do dono da casa? - ela pergunta, sentando na cadeira ao lado. Tenho vontade de suspendê-la e atirá-la de volta para os convidados. Ela parece gentil, o que aumenta minha indisposição.

- Eu tenho esse suspeito privilégio. - murmuro, e ela ri.

- Por quê "suspeito"? - respiro fundo, ainda sem olhar. Ignoro a pergunta, mas ela insiste:

- Por quê “suspeito privilégio”?

- Porque, sendo o irmão do dono da casa, eu tenho que ficar ouvindo a conversinha fiada de cada uma que passa e senta do meu lado sem ser chamada.

Ela petrifica. O copo, que flutuava como uma pluma, escorrega pela mão até pousar na mesa. Seus olhos incrédulos se agarram aos meus, mudos: sua beleza e sensualidade a haviam poupado de ouvir qualquer desagrado durante toda a vida. Hoje, porém, ela descobriu que sua carinha de anjo não vale um tostão furado neste mundo de boçais. Creio que deveria me agradecer.

- E fecha logo essa boca que você está com um puta de um bafo.

Um comentário:

Stephanie disse...

a beleza tem vários aspectos cruéis

de ser efêmera; de algumas vezes ser superficial; certas vezes estar mais em quem a vê do que na coisa achada bonita.

sim, foi um favor alertar a moça, mas puta merda, quanta sutileza!
hahahahahah