sexta-feira, dezembro 29, 2006

traição

- Você está sujo aqui…

- Opa! Obrigado.

Ela molhou o dedo nos lábios e esfregou meu colarinho. Acho que uma semana de encontros com ela não me dariam a intimidade instantânea daquele momento: rapidamente senti seu cheiro e seu suor, vi a forma alveolada dos dentes, a minúscula falha na orelha. Nunca tínhamos nos falado antes, mas eu já estava com um pouco de sua saliva em mim e o relógio marcava apenas oito e meia. Será que eu conseguia ver que as coisas não iriam parar por ali?

Entabulamos. Era Cecília, fazia medicina e era muito amiga da namorada de meu irmão. Conversávamos sobre o Mauro quando minha namorada voltou do banheiro. Imediatamente, ela interpôs-se entre Cecília e eu, agarrou meu braço e me deu um beijo.

Apagando o sorriso e sem outra palavra, Cecília meneou a cabeça em minha direção e partiu.
*

A três quarteirões de onde moro existe um cineminha de arte. Todo o pessoal universitário, artistas e desocupados em geral vão lá assistir ao último filme independente americano ou a alguma porcaria francesa. Vou duas vezes por semana porque é barato e o ar-condicionado é forte.

Duas semanas depois da festa, encontrei Cecília. Lembrei-me de que já a tinha visto no cinema algumas vezes. Estava acompanhada da namorada do Mauro.

Fiquei com as duas, conversando animadamente. Ela adorava filmes, então eu menti e disse que também gostava, que eu lia tudo que me caía nas mãos sobre Bergman, Fellini, Kubrick, que eu gastava meu salário de estagiário no jornal todinho em aluguel de fitas. Ela perguntou de minha namorada (porque mulheres gostam de entrar nesses joguinhos?). Disse-lhe que ela não gostava desse tipo de filme.

Quando minha cunhada foi comprar pipoca, roubei o celular da mão de Cecília e digitei meu telefone. Disse que, quando quisesse falar sobre cinema, era só ligar.

- Só se for pra conversar sobre cinema mudo. – ela respondeu na bucha. Franzi a testa, pensei um pouquinho e ri.

Entramos na sala.

* *

Cecília chegou atrasada no café. Pediu desculpas e depois pediu mais desculpas por ter adiado tanto o encontro: sabe como é, provas, exames... disse que Mauro era médico e que eu a entenderia.

- É, medicina é fogo. – respondi.

Pausa.

- Sua namorada não vai se importar de estarmos aqui?

Outra pausa.

- Provavelmente. Você quer ir embora?

- Não, mas também não quero causar problemas.

- Problema nenhum. Não estamos fazendo nada de mais, não é?

- Acho que não.

Sorri, e ela sorriu de volta. Em frente ao café, alguns meninos corriam de skate, aproveitando os últimos raios da tarde.

- Quer dizer, se eu pegasse na sua mão, desse um beijo e começasse a falar coisas bonitas pra você, talvez isso fosse um pouco errado. Mas não estamos fazendo nada disso.

Ela concordou.

- E ainda isso depende do ponto de vista. – arrematei. Sua mão segurando a xícara tremeu um pouco.

- Não quero causar problema. – murmurou.

Tão lindo, o rosto. Face de mulher; traços fortes, delicados, um sorriso cheio, um corpo esperto. Ela podia estalar os dedos que eu ficaria ao seu lado pelo tempo que quisesse. Nós nos queríamos, e não havia nada de errado nisso.

Ainda assim, ela desviava o olhar.

- Vamos fazer o seguinte? – falei de repente. – Vamos ficar cinco minutos em silêncio. Cinco minutos. Depois, se a gente estiver mais relaxado, podemos conversar. Se não, vamos embora e ninguém fica magoado.

Ela riu nervosa. Olhou para mim como se eu fosse um bicho muito especial e assentiu com a cabeça.

- Certo.

Calamo-nos. Ao redor da praça, os meninos corriam de skate pelo asfalto.

2 comentários:

Stephanie disse...

não há problema no desejo, às vezes são os caminhos que ele segue que dão certa dor de cabeça...

não conhecia a canção do Sinatra, mas realmente se parece com a bagunça de minha vida.

deixe os cachorrinhos em paz, eles não têm culpa da hipocrisia, ou do otimismo excessivo das pessoas no fim de ano!

beijo.

Juliana Marchioretto disse...

...
acontece,né?

belo texto.

beijo