sexta-feira, outubro 12, 2007

(17)

Eu sou um monstro, uma besta. Perdi a capacidade de sentir, de demonstrar compaixão, coisas assim. Ódio e orgasmo nada mais significam: cuspo com indiferença a trajetória monótona dos dias.

Para quê, pergunto, tanto ruído, tanta choradeira...? Sinto meu sangue uns cinco graus mais frio... atingi a temperatura corporal de um crocodilo. Não espere de mim mais do que esperaria de um réptil. Não mais me encaixo na classificação dos seres vivos, na tabela periódica. Relações humanas, para mim, são pálidas distrações de um mundo que me rejeitou. Cultivo inimigos com a mesma intensidade com que dispenso amantes. Sou um lindo monstro.

Esqueço-me na varanda do apartamento, sem camisa, fumando um cigarro dez metros acima das buzinas e da fumaça da grande cidade. Vermes se arrastam no pavimento, suando seus problemas, carregando pastas e mudas de roupa. Nunca suo; a frigidez de minha pele, a minha esterilidade, impede infiltrações dos poros, não mais pertenço aos primatas.

Perto, reconheço uma jovem: há muito tempo, antes de minha metamorfose, ela me transmitia alguma paz, um traço de alívio. Hoje, causa-me náuseas. Me vê da rua: acena para mim, sorri. Eu poderia continuar o jogo, fingir que estou satisfeito por vê-la. Talvez, aí, tudo se tornasse mais fácil.

Mas não o faço. Permaneço imóvel, com o cheiro acre do cigarro levitando às narinas. Seu sorriso desaparece; sua mão descende. Sob meu olhar impassível, ela volta a caminhar, confusa, desorientada. Antes, dá uma última vista e tenta se convencer de que sou outra pessoa, um desconhecido.

Sou um monstro; uma besta. Os cães fogem ganindo quando me aproximo, atraio tempestades.

Um comentário:

Bernardo Tonasse disse...

Não sei você, mas a sensação de ser uma besta é deliciosa quando se é uma besta.