segunda-feira, outubro 08, 2007

o gato pardo

" Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum - uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais." (Edgar Allan Poe, "O gato preto")


Uma única imagem perseguiu-me durante toda minha longa vida: eu, aos sete anos, chorando ao lado da janela e sendo repreendida por mamãe. Também me lembro de ver minha avó debruçada na janela, procurando alguma coisa.

Tal coisa, como bem sei hoje, era seu gato pardo. Em minha crueldade infantil e, provavelmente, devido ao ciúme pelas atenções de minha avó, eu havia apanhado a pequena criatura e a lançado pela janela de nosso apartamento. Naquele momento, mamãe deveria estar gritando algo sobre não jogar gatos pela janela, especialmente se eles pertencessem a membros de nossa família.

Por décadas e décadas, essa fotografia mental me perturbou até o âmago de minha alma, fazendo-me retornar aos medos de menina no exato instante em que dela me recordava.

O impacto dessa lembrança dos meus sete anos meio que desviou minha trajetória para uma determinada direção. Nos anos seguintes, tudo – ou quase tudo – parecia originar-se daqueles gritos tenebrosos de minha mãe. Minha sensibilidade aguçou-se, e passei a considerar cada vida frágil e preciosa. Por incrível que pareça, passei a gostar de animais, e tentei transmitir à minha filha, assim que nasceu, minha paixão fervorosa por todos os seres vivos.

Dessa forma, é possível imaginar meu assombro quando, ao chegar em casa, minha mãe contou-me que a menina, em seus tenros sete anos, havia jogado seu gato pardo pela janela. Furiosa, chacoalhei a menina e berrei, disparando as frustrações acumuladas ao longo do dia e da vida, buscando fazer com que ela apreendesse a importância que cada existência possuía na tessitura do universo. Ela rompeu em prantos, obviamente. Arrependi-me do escândalo logo depois, mas não voltei atrás. Minha mãe, desesperada, buscava no asfalto o gato que a acompanhara por quase toda a velhice.

Naquela noite, temi haver traumatizado minha filha. Tive ganas de ir até seu quarto, acordá-la e beijá-la e dizer-lhe que poderia arremessar pela janela quantos gatos pardos quisesse, que eu nunca mais gritaria com ela daquele modo. Mas não o fiz: receei que, caso afagasse sua cabeça naquele momento, ela nunca aprenderia a lição. Permaneci na cama.

Creio que o incidente acabou causando grande impacto em sua personalidade. Da noite para o dia, tornou-se mais amarga e rancorosa. Os anos se passaram sem que, aparentemente, a lembrança daquele dia enfraquecesse em sua memória. Fingia ser gentil com todas as pessoas e animais, mas eu, sua mãe e criadora, sabia que ela não possuía qualquer amor sincero por qualquer ser que se arrastasse sobre a Terra. Era como se meus gritos houvessem interrompido, em um momento crítico, o natural processo de formação de seu temperamento. Naquele dia, algo morrera nela.

Ainda assim, vivi calada meus anos em seu apartamento e tolerando seus gestos vazios e indiferentes. Quando ela me comprou um gato, em sua auto-propalada ânsia de mostrar-se caridosa com sua mãe e um gato ao mesmo tempo, permaneci muda. Até quando nasceu minha neta, nenhuma satisfação cresceu em mim: observava o rostinho da criança por horas a fio, vendo-a chorar sem nada fazer. Finalmente, dava-lhe o leite ou trocava as fraldas, indefesa diante das escolhas que a vida havia me legado.

Diante da silenciosa e monótona derrota que minha filha havia me imposto, pude apenas praticar uma última vingança. Um dia, quando a neta já possuía lá seus sete anos, aproximei-me da janela com meu gato pardo. Por um largo tempo eu fingira que gostava do animal quando, na verdade, nada sentia além de asco por ele. Lembrava-me minha filha. Ela, tão fútil e cheia de si; tão vazia.

Senti que minha vida não havia passado de um tortuoso círculo de enganos e falsidades. O caminho a seguir parecia mais claro. Assim, levantei o gato e o empurrei pela janela.


Um comentário:

Stephanie disse...

às vezes você também me assusta, com a lucidez que desvenda estes círculos viciosos, com a clareza que vê a crueldade infantil, com a sutileza com a qual flagra os recalques.

gostei muito deste texto. É tipo de coisa que eu leio e me dá vontade de escrever.

não se assuste, cariño. Você sabe que há coisas que precisam ser escritas.

beijo beijo beijo