segunda-feira, outubro 15, 2007

lucyenne quer ser batman

Que as crianças se atraem por tudo o que é macabro e tenebroso, não é novidade. Nessa idade, o interesse pelas brincadeiras inocentes de casinha e carrinho andam lado a lado com a mania por decapitações, chacinas e crueldades dos filmes de terror e dos telejornais. Há um quê de proibido e asqueroso no cotidiano habitado por insetos e corpos putrefatos, monstros e fantasmas, que provocam menos repulsa que fascínio em meninos e meninas.

Lucyenne conheceu o macabro cedo e de forma mais terrível do que em simples histórias de fantasma. Aos nove anos, viu a mãe morrer em decorrência do câncer que a devorava há muito. O pai, já ausente e dado a sumiços prolongados, preferiu entregar menina nos braços da tia. Paciência, pensou. Havia um tesouro mais precioso na casa da tia do que a vida opaca que levara até então: a coleção de revistas em quadrinhos no armário do primo.

Ali, desde o momento em que terminava o dever da escola até a hora de dormir, ela se realizava com histórias violentas de crimes e assassinatos, anti-heróis sombrios de mundos onde a linha entre a loucura e a sanidade se mostrava fugidia. A menina vivia sob o signo da incerteza – não sabia o que queria fazer na vida, quando sairia da casa dos parentes ou como lidaria com sua maturidade precocemente adquirida -, e enxergava seus conflitos, de alguma forma, nos gibis. Gostava, sobretudo, das aventuras do Batman, o que lhe rendeu chistes maldosos no colégio:

- Menina que lê Batman é sapatão.

- Ora, por quê?

- Menina que pergunta muito também é sapatão.

Risos. A tia também não apreciava o gosto da Lu, e sempre a chamava para lugares que toda menina, pensava, gostaria de ir: salões de beleza, chá de senhoras, o bingo. Lucyenne a acompanhava passivamente, mas, assim que chegava em casa, se trancava no quarto com o primo para ficarem a sós com as revistinhas.

Lucas, o tal primo, obviamente não ficou indiferente a essa invasão surpresa. A princípio, tendo a mesma idade que ela, a enxotava do quarto toda vez que a via debruçada sobre a escrivaninha, lendo os gibis.

Depois de algum tempo, passou a usar métodos mais perversos para expulsá-la:

- Por quê você gosta do Batman?

- Por que ele bate nos bandidos. – respondeu a menina, sem interromper a leitura. - Quando eu crescer, vou ser igual a ele.

- Ruá, ruá, ruá. Você é louca.

- Por quê?!

- Você é pobre e escurinha.

- E daí?!

- O Batman é rico e branco. E é homem. Sua maluca.

Depois de jogar a bomba, Lucas saiu. A menina fechou a revista e pensou naquilo. O primo tinha razão, não havia dúvida. Bruce Wayne era tudo o que ela não era: grande, forte, podre de rico e, a ver pelos músculos, tinha boa saúde. Por outro lado, não aceitou que Batman fosse branco: ele era negro, possuía máscara e capa pretas. Ele ficava bonito, com o capuz e as luvas negras; ela também ficaria, quando chegasse a hora.

Lucyenne cresceu. A leitura dos gibis diminuiu, enquanto sua retidão e timidez prosseguiram. Ainda assim, Bruce Wayne guiava sua vida, de algum modo: ainda sonhava em ser rica, em trabalhar e tomar conta de si mesma. Estava louca para sair da casa da tia, que, quando percebeu que não conseguira transformar a sobrinha na filha prendada que sempre quis ter, não parava de atormentá-la com brigas e pequenas discussões. A fim de economizar dinheiro para alugar um apartamento, Lucyenne trabalhava à tarde numa loja do shopping e fazia cursinho à noite. Não sobrava muito tempo para o homem-morcego.

Um dia, já com seus dezesseis anos, estudava na escrivaninha de Lucas. Os gibis do armário haviam ido para o lixo há anos, e ela só continuava a ir para o quarto dele porque era o único lugar da casa onde a luz era decente para ler. A escrivaninha também era confortável. Acabou cochilando.

Acordou com uma mão gelada no ombro. Teve um sobressalto quando viu o primo diante de si, sorrindo. Ele murmurou algo, mas Lucyenne sentiu apenas o fôlego nauseante de álcool que exalava. Pediu desculpas por ter ocupado a mesa e já se levantava quando a mão dele apertou seu ombro e a forçou a ficar sentada. Ele aproximou a boca do rosto da menina – o bafo luminoso da cachaça, os olhos injetados e felizes – e pressionou seus lábios contra os dela. Mão gelada subindo pela blusa. Arrepio. Instintivamente, ela o empurrou e se jogou da cadeira, aterrissando sobre a porta e a abrindo com força.

Disparou para a sala, e daí para a rua, e daí para o mundo.

*

Lucyenne caminhou até o janelão que se estendia de um lado a outro da imensa sala: sentiu o ar gelado que se insinuava pelas frestas, apreciou o cenário das árvores balançando contra o vento noturno, o silêncio e a quietude.

Antes que desviasse o olhar, porém, um raio de luz cortou o céu: a figura de um morcego deitou sobre as nuvens, pairando como uma sentença sobre o céu iluminado de Gotham City. Como em tantas outras vezes, a cidade precisava dela; e ela, por instinto, já corria para a passagem secreta que dava acesso à bat-caverna.

Por último, a moça calçou as botas, erguendo o capuz que provocava tanto terror no coração dos criminosos de Gotham. Não havia tempo a perder. Pulou para dentro do Batmóvel, engatou o turbo e disparou rumo ao coração da cidade, desaparecendo com um estrondo em meio às árvores.

5 comentários:

Ivo La Puma disse...

Este texto me fez lembrar do Homem-Aranha, e de uma frase que era dita num comercial do seriado de desenhos dele: "Quem não gostaria de ser o Homem-Aranha?" Eu sempre quis ser o Homem-Aranha... Diferentemente do Lucas, minhas revistas estão lá em casa, bem guardadinhas, para quando eu voltar a ter tempo, quando estiver aposentado (espero chegar a esse tempo), poder reler as histórias que marcaram a minha adolescência. Por mais que meu esquerdismo fale alto, por mais que falem alto que estes heróis de HQs sejam apenas frutos da cultura que o Império quer disseminar pelo mundo ocidental, eu sempre desejarei ser o Homem-Aranha...

Cara, valeu pelo link aqui no seu blog. Eu também já linkei o seu. Estarei sempre voltando por aqui, vamos nos falar muito! Gosto do seu estilo de escrever, um jeito psicológico, interessantíssimo!

Abraços!

Stephanie disse...

gosto do Batman porque ele é movido por vingança. Porque não é alienígena, não foi picado por aranha radioativa nem é resultado da evolução.

Bruce Wayne é egoísta e humano - por isso pode ser herói.

ah, sobre o gato - imagino que qualquer hora dessas surgirá um novo dueto nosso

(acho que acabei promovendo um encontro de subversivos!)

;)

beijo beijo

Thai disse...

Hoje eu descobri que gosto do seu blog. Entrei nele por mero acaso (será?), enquanto visitava o Diário Subversivo, do Ivo.

Mais do que do Batman ou do Homem-Aranha eu gostava era dos gibis da Turma da Mônica. Sei que a diferença é grande, mas o Cebolinha sempre conseguiu ser bem interessante com seus planos falhos. Dos seis aos nove anos fui leitora assídua dos gibis e minha casa (para "desespero" da minha mãe) sempre se encontrava cheia deles todos espalhados pelo chão. Agora que cresci um pouco (mais nem por isso deixei de apreciar os gibis!) as revistinhas fazem a alegria de uma outra geração -aquela dos computadores e das máquinas inválidas e dos telefones celulares e da chamada "tecnologia"; e assim, aos poucos, se perdem. Ou melhor: a magia de ler se perde. Que triste é isso...

Mas bem, acabo de encontrar outro blog bom de visitar! =]

Thai disse...

Uma notinha de pouca importância: coloquei um link do seu blog no Palavras Repetidas (que é um dos lugares em que tento escrever). ;]

(Se achar que não foi muito razoável da minha parte [ainda mais porque nunca nos falamos] diga-me, que retiro o link, ok?)

Princess Deluxxe disse...

por onde vc anda agora?
lembra de mim??
":)