sexta-feira, outubro 19, 2007

... e foi aí que começaram meus problemas.

(parte I)

Fala com a voz límpida, um forte sotaque carioca e uma gentileza que, em outras circunstâncias, eu até teria apreciado:

- Estamos com sua filha. Junte cem mil reais e espere por nossa ligação. Se você falar com a polícia, ela morre.

Desliga. Fico olhando para o celular, apatetado. A primeira coisa que me vem à cabeça quase me faz vomitar, e fecho os olhos de tanto ódio que sinto de mim mesmo naquele segundo: “pelo menos, não vou mais gastar dinheiro com brinquedos”. Existe algum canto muito perverso na minha cabeça para que eu pensasse nessa piada sórdida. Porém, tudo faz parte da insanidade daquele telefonema – a realidade deu uma pausa. Instantes depois, eu já esclarecia a vista, e a sucessão de coisas a fazer parecia definida. Não há tempo para ficar ruminando sobre os monstros que habitam na mente da gente.

Com um pulo, corro para a porta da frente, pegando a chave do carro e a carteira no caminho.

*

Disparo com o carro pelas ruas que me levarão à escola. No caminho, agarro o celular com força, tentando acertar as teclas do número da diretora. Eu os sei de cor, mas a velocidade e o nervosismo tornam tudo mais difícil. Finalmente, jogo o celular para o banco traseiro; estou perto, afinal de contas. Penso em Márcia: aquela era a primeira semana que minha ex-esposa havia me deixado ficar com a Clarissa. Como eu posso dizer a Márcia que a haviam levado? Como conseguiria a confiança dela de volta?

“Nada disso”. Seguro o volante com as duas mãos. “O problema principal está na sua frente, resolva-o antes de pensar em outros”. Essa foi uma das boas coisas de meu treinamento no Exército, a capacidade de isolar as variáveis e pensar em uma bronca de cada vez. E, neste momento, meu problema é conseguir Clarissa de volta, e não lidar com Márcia. Foco. Preciso de foco.

Freio o carro, as rodas guincham. Saio, deixando a porta escancarada. Imagino encontrar jornalistas, carros de política e professores assustados na frente da escola, mas não há ninguém. Corro através do portão, sem sentir meu próprio fôlego. Alguém grita para que eu pare. Ignoro: o cenário à minha frente se movimenta como num sonho. Entro no prédio do maternal; um grupo de crianças olham para mim, petrificadas de susto. Pulo os degraus das escadas. A sala dela fica no sétimo andar.

Quando chego lá, a fadiga em minhas perna começa a dar seus sinais. Ignoro: é estranho. Fora algumas crianças fazendo algazarra no corredor, não há sinal de polícia, nada. Penso, horrorizado, que talvez o seqüestrador a tenha raptado no caminho para casa. Mas mesmo isso não faz sentido, não a deixariam partir da escola desse jeito, não uma menina de cinco anos. Senão, eu pago essa mensalidade absurda de cara pra quê? Pra não poder deixar meus filhos no colégio com segurança, o mínimo que se precisa pra que a gente possa viver e trabalhar em paz? A culpa é desse governo, que não investe nada em segur...

Lá vou eu, me dispersando de novo. Foco. Pense no treinamento. Eu sou um soldado. Eu farei o que for necessário para que as coisas fiquem bem novamente.

Chego na porta da sala de Clarissa. Viro a maçaneta e jogo a porta para trás. A professora e as quinze crianças param de falar e olham em silêncio para mim, um silêncio que me corta em dois. Instintivamente, meus olhos se dirigem para o fundo da sala, onde ela costuma ficar. Caio de joelhos lentamente. Escuto vozes, mas nada ouço; olho as crianças, mas não as vejo. Finalmente percebo meu fôlego curto e estrangulado quando vejo Clarissa sair do meio dos meninos e correr em minha direção, rindo seu sorriso banguela, os braços muito abertos.

*

Horas depois, eu, Márcia e Clarissa saímos do circo que eu havia criado. Acomodamos-nos no carro – que, por um milagre, ainda estava com as portas escancaradas em frente à escola. Seguimos lentamente, quietos. Eu falara com a diretora, policiais, o porteiro: Clarissa não havia saído da sala de aula a manhã toda. Finalmente, percebi que havia sido vítima de uma daquelas simulações de seqüestro, em que o marginal liga de um telefone do interior do presídio e finge que raptou alguém de sua família. Um golpe corriqueiro hoje em dia, mas que já deixou desesperada (e mais pobre) gente mais sã do que eu.

Márcia, ao meu lado, parecia mais aliviada do que irritada. Clarissa, alheia às preocupações, observava a rua. Tudo em paz novamente.

Na metade do trajeto de volta à casa, um celular toca. O meu. Na confusão, eu o havia esquecido no chão do carro. A mãozinha delicada de Clarissa o pega e estende para mim. Agradeço e, antes de atender, vejo o número da chamada: “privado”. A mesma mensagem da ligação anterior. Era o “seqüestrador”:
- Alô? – falo, tentando segurar a raiva.

- Já juntou o dinheiro?

- Você deu azar, meu querido. – vejo, com o rabo do olho, Márcia ouvindo atentamente a conversa. – Minha filha está aqui comigo. Se você ligar de novo pra mim ou pra minha família, vou te cortar em pedacinhos e fazer você comer. Capisce?

Silêncio. Não deveria ter dito isso com a menina no carro, mas preciso descarregar meu ódio de alguma forma.

A gentileza da voz do carioca some e ele começa a gaguejar. Estranho, ele já deveria ter desligado o telefone.

- Vo-vo-você está louco, cara. Tamos aqui com sua filha. Quer que ela morra?

- Vá se foder. – murmuro, e desligo. Márcia olha para mim. Não sei se foi a melhor reação, mas agora já era. Esses caras do golpe nunca ligam de novo.

Meu celular toca. “Privado”. Penso se devo atender ou não. Atendo.

- Vá se fo-der! – repito, mais feroz. Minha ex-esposa sussurra para que eu desligue. Mas já é tarde demais. Ouço vozes ao fundo – um soluço. Choro de criança.

- Você é doido, seu Eduardo. Estou com a faca na garganta da tua filha. Se continuar falando comigo assim, corto a cabeça dela fora.

Paro o carro no acostamento, sob uma chuva de buzinas. Márcia está puxando meu braço, apavorada, pedindo que eu desligue imediatamente. Clarissa está de olhos arregalados e parece que vai desatar a chorar. Meu nome não é Eduardo.

- Meu nome não é Eduardo.

- Hã?! – pausa. O choro aumenta. – Esse não é o 9147-8716?

- Não. Esse não é meu número, e meu nome não é Eduardo.

Pausa.

- AH! PUTA QUIU PARIU! – ouço tapas e o carioca gritando com alguém. Gritos de homem ao fundo. O choro continua. – Filho da puta!! Seu viado escroto burro filho da puta! – Mais tapas. - ... pegou o telefone errado, seu escroto burro! Burro!!

Sinto-me no meio de um episódio dos Trapalhões. Mas o humor é rapidamente substituído pela voz nervosa do Carioca:

- Aí, meu chapa. Agora fudeu. Você tá metido nessa e vai ter que ir até o fim. Vai lá na... me passa o endereço, viado burro... vai na Rua Laranjeiras, 317. Fala com Eduardo Scherer, diz que estamos com a filha dele e que é pra esperar minha ligação. “Capixe”?

- Isso não é problema meu. – respondi. – Não tenho nada com isso.

- Rua Laranjeiras, 317. Fala com Eduardo Scherer. E rápido. Essa aqui pode não ser tua filha, mas vai pro saco de você não se mexer. E a culpa vai ser tua. – desliga.

Olho para Márcia, que está quase aos prantos, sem entender nada. É sempre assim: quando você pensa que seu dia já está chegando ao fim, descobre que ele nem começou.


(... continua!)

5 comentários:

Rachel disse...

O beijo para a Becca está dado!

Seu pedido foi irresistível!

Um abraço, Rachel.

Stephanie disse...

quedê o fim da história seu crápula??

tô esperando!

beijo beijo

Ivo La Puma disse...

Opa! A história esquentou! Aguardo a continuação!

Abraços!

Márcia disse...

Mas olhe s�. J� n�o bastava me dar conta de ter uma figura�a entre os meus amigos de orkut, ainda descubro que h� uma veia liter�ria. Adorei. Vou voltar pra saber o resto da hist�ria :) Beijo, M�rcia.

May disse...

Eiiiiiiiii... eu ainda quero saber o fim da história!!! Eu voltei pra blogosfera... e vc, volta???