domingo, dezembro 31, 2006
fim de ano (3)
sexta-feira, dezembro 29, 2006
traição
- Opa! Obrigado.
Ela molhou o dedo nos lábios e esfregou meu colarinho. Acho que uma semana de encontros com ela não me dariam a intimidade instantânea daquele momento: rapidamente senti seu cheiro e seu suor, vi a forma alveolada dos dentes, a minúscula falha na orelha. Nunca tínhamos nos falado antes, mas eu já estava com um pouco de sua saliva em mim e o relógio marcava apenas oito e meia. Será que eu conseguia ver que as coisas não iriam parar por ali?
Entabulamos. Era Cecília, fazia medicina e era muito amiga da namorada de meu irmão. Conversávamos sobre o Mauro quando minha namorada voltou do banheiro. Imediatamente, ela interpôs-se entre Cecília e eu, agarrou meu braço e me deu um beijo.
Apagando o sorriso e sem outra palavra, Cecília meneou a cabeça em minha direção e partiu.
A três quarteirões de onde moro existe um cineminha de arte. Todo o pessoal universitário, artistas e desocupados em geral vão lá assistir ao último filme independente americano ou a alguma porcaria francesa. Vou duas vezes por semana porque é barato e o ar-condicionado é forte.
Duas semanas depois da festa, encontrei Cecília. Lembrei-me de que já a tinha visto no cinema algumas vezes. Estava acompanhada da namorada do Mauro.
Fiquei com as duas, conversando animadamente. Ela adorava filmes, então eu menti e disse que também gostava, que eu lia tudo que me caía nas mãos sobre Bergman, Fellini, Kubrick, que eu gastava meu salário de estagiário no jornal todinho em aluguel de fitas. Ela perguntou de minha namorada (porque mulheres gostam de entrar nesses joguinhos?). Disse-lhe que ela não gostava desse tipo de filme.
Quando minha cunhada foi comprar pipoca, roubei o celular da mão de Cecília e digitei meu telefone. Disse que, quando quisesse falar sobre cinema, era só ligar.
- Só se for pra conversar sobre cinema mudo. – ela respondeu na bucha. Franzi a testa, pensei um pouquinho e ri.
Entramos na sala.
* *
Cecília chegou atrasada no café. Pediu desculpas e depois pediu mais desculpas por ter adiado tanto o encontro: sabe como é, provas, exames... disse que Mauro era médico e que eu a entenderia.
- É, medicina é fogo. – respondi.
Pausa.
- Sua namorada não vai se importar de estarmos aqui?
Outra pausa.
- Provavelmente. Você quer ir embora?
- Não, mas também não quero causar problemas.
- Problema nenhum. Não estamos fazendo nada de mais, não é?
- Acho que não.
Sorri, e ela sorriu de volta. Em frente ao café, alguns meninos corriam de skate, aproveitando os últimos raios da tarde.
- Quer dizer, se eu pegasse na sua mão, desse um beijo e começasse a falar coisas bonitas pra você, talvez isso fosse um pouco errado. Mas não estamos fazendo nada disso.
Ela concordou.
- E ainda isso depende do ponto de vista. – arrematei. Sua mão segurando a xícara tremeu um pouco.
- Não quero causar problema. – murmurou.
Tão lindo, o rosto. Face de mulher; traços fortes, delicados, um sorriso cheio, um corpo esperto. Ela podia estalar os dedos que eu ficaria ao seu lado pelo tempo que quisesse. Nós nos queríamos, e não havia nada de errado nisso.
Ainda assim, ela desviava o olhar.
- Vamos fazer o seguinte? – falei de repente. – Vamos ficar cinco minutos em silêncio. Cinco minutos. Depois, se a gente estiver mais relaxado, podemos conversar. Se não, vamos embora e ninguém fica magoado.
Ela riu nervosa. Olhou para mim como se eu fosse um bicho muito especial e assentiu com a cabeça.
- Certo.
Calamo-nos. Ao redor da praça, os meninos corriam de skate pelo asfalto.
terça-feira, dezembro 26, 2006
amigos
Gosto dos dois. São bons amigos: ele fez parte da minha turma de faculdade, e ela começou a namorá-lo na minha festa de noivado (o meu finado noivado...), há três anos. Não há oportunidade em que nos encontremos para que eles não me encham de abraços e palavras afetuosas. Eu, em troca, ofereço-lhes os ingressos de cinema e os brindes que aparecem no meu trabalho. Saímos uma vez a cada dois, três meses, bebemos um vinho, papeamos sobre as dificuldades dos trinta anos. São legais. Quer dizer, não são meus amigos mais próximos, mas podemos nos chamar de “amigos” sem constrangimento algum.
- Desculpe. – sussurra Tibúrcio, assim que vê minha hesitação. – Foi totalmente inconveniente, terrível...
- Esqueça tudo o que dissemos. – ele pede, em vão.
- Pelo amor de Deus, fale alguma coisa. – ele suplica. Percebo que estive com os olhos arregalados e calado por quase um minuto.
Por outro lado, são meus amigos. Não há nada de errado no que me pediram; ao contrário, denota um grau de confiança que eu mesmo não concedo a ninguém. Foi um pedido muito doce, sincero. Subitamente, sinto-me um palerma por não aquiescer. E porque não?
- Claro que eu aceito. – falo de repente, uma oitava acima do normal. – Claro que sim. É uma honra.
O rosto dos dois se ilumina. Diana deixa escapar um suspiro, e sinto um odor azedo de ovos alcançar meu nariz. Esforço-me para permanecer sorrindo. Tiburcio quase dá um pulo:
- Que bom! Que bom, que bom! Você não vai se arrepender. Vai ser muito legal. – ele pega um papel do bolso e o coloca em minha mão. – Aqui está nosso endereço. Sexta à noite está bom pra você?
- Está ótimo. – o sorriso congela em meu rosto.
Ele aperta minha mão, profundamente agradecido. Depois, diz que eu provavelmente estou constrangido e que não querem incomodar-me mais. Eles se encarregarão de tudo. Sexta às oito da noite, então, tudo bem? Ótimo.
Antes dos dois partirem, ela vira para mim e pisca.
Amigos.
quinta-feira, dezembro 21, 2006
selvageria
Ela se aproxima lentamente, medindo cada passo como uma atriz em sua grande performance. O copo em sua mão parece uma pluma, o vestido leve que envolve seu corpo parece uma pluma, ela parece uma pluma flutuando em meio às pessoas da festa, mas estou pouco me lixando. Talvez antes, antes de Clara ter me deixado, quando eu era bem-humorado e não bebia tanto, talvez aí eu encontrasse a vontade necessária para flertar com uma bela mulher. Mas antes, como alguém disse, já foi, e o que é agora não é nada bonito. Seu rosto, que antes me hipnotizaria com sua simetria, hoje é uma pelanca esperando para acontecer. As pernas grossas e torneadas para mim parecem os cambitos tortos de um goleiro. Cerro a cara e desvio o olhar quando ela chega perto da minha cadeira.
- Oi. - sussurra, allego molto troppo. Voz grave, linda.
Grunho.
- Você não é o irmão do dono da casa? - ela pergunta, sentando na cadeira ao lado. Tenho vontade de suspendê-la e atirá-la de volta para os convidados. Ela parece gentil, o que aumenta minha indisposição.
- Eu tenho esse suspeito privilégio. - murmuro, e ela ri.
- Por quê "suspeito"? - respiro fundo, ainda sem olhar. Ignoro a pergunta, mas ela insiste:
- E fecha logo essa boca que você está com um puta de um bafo.
quinta-feira, dezembro 14, 2006
(2)
segunda-feira, dezembro 11, 2006
partido
- Hã? Oi...?
- Não, fique deitada. Eu já ia chamar a ambulância.
- Eu estou bem... Quem é você?
- Te encontrei largada no meio da rua! Desculpa ter te trazido pra cá, mas é que eu moro perto e fiquei com medo de te passarem por cima. Eu sei que não é pra mexer em vítima de acidente, mas não dava pra te deixar lá. Atropelaram você?
- Não sei.
- Fica deitada. Você está pálida!
- Estou bem.
- Tá sentindo dor?
- Não... não estou sentindo nada.
- Ai, caramba. Peraí, deixa eu ligar pra ambulância...
- Não estou sentindo nada.
- Alô? Pombas! Não era 193?
- Esqueça isso. Fica comigo.
- Mas eu tenho que chamar um médico! Eu chamaria minha namorada, mas ela tá viajando. Está um baita frio lá fora. Você tá com frio? Quer um cobertor?
- Não estou sentindo nada.
- Tá, tá, ok. Deixa eu dar uma olhada em você... tá doendo? Aqui?
- Não.
- Parece que você não quebrou nada. Mas seu braço está branco! Seu rosto também!
- Calma. Não gosto de gente gritando.
- Dá pra ver as veias no seu braço, olha só!
- Senta.
- Ok, ok, fica calma... cacete, ninguém atende!
- Você tem um rosto bonito.
- ´Brigado. Você também. PORRA! Caiu a ligação de novo!
- Pega no meu pulso, por favor.
- Tá. PUTZ, seu braço tá gelado!
- Você sente minha pulsação?
- Peraí... não. Não estou sentindo, não! Ai, caramba...
- Pega aqui no meu peito. Sente meu coração.
- Opa, licença. Tá frio.
- Sente algo? Encosta o ouvido.
- Hmmm...
- E?
- Não estou sentindo nada.
- Está vendo? Minha mão está ficando roxa, escurecendo. Não sinto dor, nem frio, nem nada. Não consigo pensar em mais nada além do que estou vendo.
- Fica calma.
- Estou calmíssima. A lâmpada da sua sala está muito forte pra mim; acho que isso significa que minhas pupilas não estão mais contraindo. Vê? As unhas já estão pretas. Minhas pernas estão começando a endurecer.
- Eu vou pegar um copo d´água pra você, ok?
- Não. Fica comigo. Por favor.
- Espera, eu já volto!
- Meu corpo está ficando inchado; antes, ele abria os poros quando precisava expelir água. Mas os poros não abrem mais, e a água fica acumulada no corpo.
- Estou chegando!
- Eu pedi pra você ficar, mas você não quis.
- Pelo amor de Deus, estou trazendo a água!
- Porque você não ficou...?
- Cheguei!
Mas, quando ele chegou, ela já havia partido.
desenganar
Durante longas horas, todos os dias, ele rejeita seus telefonemas, suas tentativas de contato. Está ocupado demais construindo uma imagem dela, que, jura, permanecerá nos anais da literatura lírica por tempo infinito.
Ela está puta, porque se recusa a transformar-se num totem. Deseja apenas amá-lo.
Hoje, ele se recusa novamente a vê-la. Prefere pensar que está morta: tanto melhor para o poema que tenta escrever, no qual compara o rosto de cadáver que ela ostenta com a alvura das colunas da Acrópole. Deseja torná-la o arquétipo do amor perdido, da paixão irrefreável e absoluta que leu em tantos poemas e que viu em tantos filmes do cinema mudo, que viu expressa nas telas dos mestres e nas esculturas clássicas. Não namora mais uma garota, mas uma idéia, ainda que essa idéia esteja batendo em sua porta nesse exato minuto e tentando chamá-lo de volta à razão abandonando essas intenções estúpidas.
Impávido, ele tampa os ouvidos e busca visualizar sua amada imortal, falecida sobre a tumba de Lenora; morta, morta, morta.
Ela esmurra a porta e castiga a campainha:
- Eu estou aqui, idiota! E não num livro!
Ele agarra o abridor de cartas e aproxima-se da porta trancada, ansioso para dar vazão a sua verve poética.
quinta-feira, dezembro 07, 2006
(1)
com brutal intensidade
em ser outro que não eu.
Vejo-me em outras vestes,
um novo corpo,
um novo rosto,
fazendo coisas desprezíveis e
comendo mulheres que nunca vi.
Quando desperto desses sonhos, imagino
se sou eu naquele momento
ou o outro sonhando de mim.
A cada dia, durmo mais uma hora,
a cada hora, sou menos de mim.
Temo o dia
em que o outro
não constituir mais sonho
e nem lembrança eu for.
quarta-feira, dezembro 06, 2006
maldito rio
barreiras
Relatos de iniciação sexual com cabras e bananeiras não são incomuns nos rincões do País. Alguns dizem que mesmo nas metrópoles o costume ancestral continua.
Cansei de ver gente tratando árvores e plantinhas domésticas com mais afeto e intimidade do que com os próprios familiares. A atenção que os solitários dedicam às suas samambaias ou à mangueira da esquina, abraçando-as, afagando-as o caule e as folhas de maneira quase voluptuosa, não representa nada menos do que um ato de entrega absoluta.
Como se vê, nem mesmo a barreira entre reinos pode impedir a materialização de uma verdadeira paixão. Impressionamo-nos com as mudanças que ocorrem no interior da espécie humana, como a união entre pessoas do mesmo sexo e o gradual reconhecimento da mulher como centro de uma relação estável, quando, na verdade, o advento de tais mudanças já podia ser previsto como passos na evolução da sexualidade desde a Antiguidade.
A maior fronteira a ultrapassar, a que encerra o futuro do sapiens, está em vencer o preconceito que envolve a questão do amor inter-Reinos. Deixemos por um momento o que já está sendo discutido por pessoas melhores do que nós e meditemos um pouco sobre esse conceito revolucionário de amor e comunhão.
Charles L., 45, por exemplo, é um caso raro que prenuncia uma nova era para as relações sociais. Morador de Nazaré da Mata, cidade do interior de Pernambuco, Charles apaixonou-se há três anos por um conjunto de Agaricus bisporus – fungo comestível do filo Basidiomycota vulgarmente conhecido como “champignon”, utilizado no preparo de saladas e massas.
Almas menos elevadas sorririam diante do relacionamento entre um homem e um fungo, mas eu tento analisar o caso sob outro prisma. Charles encontrou o grupo de A. bisporus no sítio de um amigo e, desde então, passa todo o tempo livre de que dispõe em sua companhia. O dono do sítio já tentou expulsá-lo, sem sucesso: a cada investida, Charles apenas abandonava o local para voltar na calada da noite. Ameaças de acabar com os champignons foram respondidas pelo amante com desespero e súplicas. Não vendo outro problema fora a desconfiança e os risos do povo de Nazaré, o amigo resolveu deixar Charles cultivar sua paixão proibida.
O que nos espera? Milhões de pessoas vivem amores secretos com cogumelos, bolores e leveduras, reprimidos pela incompreensão dos que pensam que o amor é reservado somente para o Homo sapiens, que nem sabe o que fazer com ele. Outros escondem seu afeto por protozoários e outros organismos unicelulares, à espera de dias melhores.
Reconhecer o amor inter-Reinos será a maior prova de tolerância que o sapiens pode legar à sua espécie. Duvidar disso é colocar em xeque a própria existência do amor ilimitado e irresoluto que deveria existir entre todos os seres vivos, sejam homens, mulheres e fungos. Quando se vê Charles L. com seus champignons, têm-se um pequeno vislumbre do que significa essa promessa. Olhem para ele...
terça-feira, dezembro 05, 2006
nós

Existem vários tipos: o simples, o clássico, o windsor, o meio-windsor. O de meu pai é um simples. Ele nunca me ensinou a fazer outro tipo, mas, também, eu nunca precisei. O simples é rápido e fácil de fazer, e também acho que papai não sabia fazer outro. Creio que ele se contentava com esse; imagino que, quando ele tinha dezoito anos e havia acordado na manhã do primeiro dia de seu primeiro emprego, meu avô deve ter ensinado o nó simples a ele. Com o tempo, a tradição ficou.
Não sei se quero aprender outro nó: gosto desse. Sei que há muito mais nele do que apenas o trançar e puxar de uma gravata. Penso em meu avô e no tempo em que todo homem tinha que usar gravata até para ir na esquina comprar pão. Esse nó deve ter servido muito bem.
Penso em quanto tempo foi necessário e quantas gravatas passaram pelos pescoços de minha família para que eu estivesse hoje dando esse nó. Ele não é perfeito, longe disso: sempre que o aperto, penso que estou apertando minha própria coleira de vícios herdados no sangue. Às vezes, cogito aprender outro nó e quebrar a ditadura hereditária para que meu filho não carregue os mesmo traços que tantas vezes me parecem tão antiquados.
Mas, quando ainda estou ruminando o assunto, vejo que já enlacei a gravata ao redor do pescoço da maneira habitual. Dou uma olhada no espelho e acabo chegando à conclusão que realmente não há nada de errado com o nó.
Mesmo com suas falhas, é um bom nó, que já serviu a meu pai, meu avô e o pai dele, e que me deixa orgulhoso de tê-lo aprendido.
Não há nada de errado com o nó, mas talvez haja algo de errado comigo.
segunda-feira, dezembro 04, 2006
todos aqueles pequenos suicídios
Viver com Tatiana era cometer pequenos suicídios diariamente, três vezes ao dia, durante muitos dias. Nunca vinha aquela morte verdadeiramente fatal, de deixar estirado no chão, livre do fardo da vida e do bafo da Tati. A dor atacava em pequenas doses, que aleijavam mas não tinham força suficiente para deitar-me à terra, coisa que eu desejava quando se tratava de Tatiana, algo que sempre desejei.
Há muito tempo tenho descrito meus relacionamentos como instáveis, doentios, construídos sobre jogos de palavras, falsidades e traições. Cheguei a afirmar, inclusive, que o amor não passava de um mal disfarçado desejo de auto-flagelação.
Todavia, descobri com Tatiana que também existem namoros verdadeiros, permeados por um amor doce. Têm que existir: afinal de contas, a dor e o sofrimento lancinante que passei ao seu lado só podem apontar para o outro extremo. Apenas assim a redenção do mundo pode acontecer, e há tanta coisa que Tatiana deve redimir. Minhas expectativas, por exemplo.
Minha paciência.
Minha fé em Deus e na anarquia quase absoluta das emoções humanas.
Minha crença no sistema republicano e na eleição de representantes para governar em nome do povo.
Minha lealdade aos amigos e aos princípios que aprendi na faculdade.
Minhas lembranças de outros namoros e outras mulheres. De tão vil, Tatiana corrompeu as memórias de meus primeiros namoricos inocentes, transformando-os em episódios sórdidos de uma adolescência reprimida e pederasta.
Da mesma forma que a existência do mal extremo denota um bem maior a fim de manter o equilíbrio do universo, a ocorrência de Tati demonstra que alguém com um amor profundo por todos os seres vivos habita o outro pólo do globo.
Não que ela represente o pior do que a humanidade pode oferecer, longe disso. Reconheço que eu mesmo fui o culpado de muitas das situações tensas que vivemos. Digo apenas que, caso Deus tenha criado Tatiana, Ele tem muitas explicações a dar.
sábado, dezembro 02, 2006
alta madrugada
Vozes abafadas de um casal. Sussurros: alguma coisa sobre o adiantado da hora, e um pedido para que ela durma no apartamento. Um suspiro. Mais sussurros.
O motorista já se fez ver pelo casal e a mulher, agora, dirige-se para o táxi. O homem a acompanha até a porta. Suspiros, sussurros e soluços. Encobrindo o rosto com um lenço, ela abre a porta de trás e se atira no banco, como se pudesse desaparecer no estofado. Fecha a porta. O homem, permanecendo no meio-fio, observa enquanto o táxi desloca-se lentamente até a esquina, e, daí, ganha o mundo.
Diante do silêncio do motorista, ela murmura o nome de uma rua do outro lado da cidade. Curvando a cabeça, o condutor engata a quinta e dispara pelas avenidas do centro.
Há muito deixou de perceber os edifícios, as cenas de acidente que encontra pelo caminho, os mendigos e os travestis. O que pareceria novidade para um jovem desabituado com a noite lhe é indiferente, comum à sua cidade, a todas as cidades onde já trabalhou; era velho, trabalhara bastante em todo lugar.
Não importa, para ele, as revoluções que tomam lugar no exterior, mas as que ocorrem dentro do carro naquele momento. A mulher, após afastar-se do prédio, começa a chorar compulsivamente. O farol de um carro vindo na direção contrária desvenda-lhe o rosto moreno, belo, com alguns vincos de idade prematura.
Talvez também tivesse viajado muito e conhecido muitas cidades. Talvez – e o pensamento demorou na cabeça do motorista – também tivesse sofrido na mão de outros. Talvez os dois não fossem tão diferentes quanto a distância entre eles no carro parecia demonstrar.
Sua cabeça começa a flutuar para longe dos cruzamentos e dos semáforos; viaja pelo tempo, agora. Vê a primeira esposa na cozinha preparando o café, e os contornos de seu corpo lhe parecem assustadoramente iguais aos da mulher do rosto moreno. Repetindo seus gestos de anos passados, aproxima-se da esposa e mete-lhe um susto que a faz gritar e soltar a xícara. Ri. Ela permanece de costas, enquanto ele lhe acaricia a nuca com os lábios, envolve-a nos braços, levantando a saia lentamente. Ela ri ainda mais. É cedo. Beijam-se.
Quase tarde demais, o motorista escuta os gritos da mulher e vira o volante na direção contrária à dos faróis e ao som das buzinas. Seu pé castiga o freio e o carro dança no asfalto, os pneus gritando.
Segundos depois, o táxi está atravessado na avenida deserta, intacto. Os dois ocupantes respiram pesadamente, sem falar nada. O caminhão invadira a faixa do motorista: não havia sido culpa sua. A mulher o sabe e permanece calada.
Automaticamente, ele emite um tímido pedido de desculpas, engata a primeira e segue a rua. A sensação de ter compartilhado aquela quase-morte com uma bela mulher o enche de orgulho, quase como se tivessem feito amor no banco traseiro.
Ao chegar ao endereço indicado, ele encosta o táxi diante do prédio. Ela pergunta com doçura, já passado o surto de choro e o susto:
- Quanto é?
O motorista, num gesto ensaiado, encosta o braço no assento do passageiro e gira o pescoço apenas o suficiente para que seus olhos manchados de velhice encostem nas jóias castanhas que o fitam:
- Não é nada não, dona. Boa noite.
Ela franze a testa, mas só por um momento. Seus lábios apertados afrouxam-se num sorriso triste; balança a cabeça e, abrindo a porta lentamente, deixa que o motorista veja suas pernas delgadas se esparramando pelo banco até os pés se apoiarem na calçada. Seu peso, mais leve que uma gota de chuva, abandona o carro. Ela bate a porta e encaminha-se para a portaria.
Quando a moça entra, o taxista dá a primeira e parte lentamente. Vai para casa, sorrindo.
terça-feira, novembro 28, 2006
o brasil na primeira guerra mundial
15 de outubro de 1918
Os fatos de ontem ainda me colocam de cabelo em pé; creio que metade de minha cabeça está branca a essa hora. Fatos aterradores, os mais atrozes que já vi desde que essa maldita guerra começou, desenrolaram-se diante de meus olhos, como num desses contos de Poe que enche de calafrios o coração...
A moral da tripulação, como eu já havia ressaltado, está em pandarecos. Desde o 20 de junho, quando zarpamos de Fernando de Noronha, a flotilha esperava travar combate aos submarinos alemães que infestam o Atlântico. A princípio, nossos corações possuíam o brio de se bater contra o odioso Kaiser em defesa da paz mundial e de nossa pátria. Eu mesmo havia festejado quando fui nomeado para a tripulação do "Bahia", parte da DNOG (Divisão Naval em Operações de Guerra). O fato de que o valoroso Almirante Frontin está no comando da frota apenas nos enchia de vontade de encontrar logo o inimigo.
A coisa toda começou a degringolar em agosto: enquanto patrulhávamos a costa africana, baseados em Dacar, fomos assaltados por um surto fulminante de gripe espanhola. 176 patrícios nossos fecharam os olhos para nunca mais abrirem; eu mesmo perdi meus amigos de carteado, o Pinduca, o Bolão... negócio muito triste.
Mais triste o fato de que ainda não encontramos nem uma sucata alemã; ocorreu um incidente em julho, quando o tender Belmonte foi supostamente atacado por um submarino, mas após nosso contra-ataque não encontramos nem sinal dele.
A espera pelo combate nos colocava de prontidão durante 24 horas. Cansávamos de lutar contra a gripe, o tédio, a ansiedade; a tensão ameaçava comer-nos vivos. Até que ontem...
O grumete Saldanha foi o primeiro a ver o rastro no mar. Uma massa escura, de reduzidas proporções, rondava o "Bahia". Excitado, o rapaz correu para a ponte de comando e deu o alarma. Logo, todos nós estávamos no deque, acompanhando com os olhos o rastro escuro de espuma que rodeava a frota, sumia e logo reaparecia. Sua forma e velocidade só poderia significar uma coisa: o periscópio de um submarino! Tínhamos encontrado nossa presa!
Após cinco minutos que pareceram uma eternidade, a salva cessou. Pouco a pouco, a quietude do oceano retornou para nossos pobres ouvidos, restando do ataque apenas um zumbido. Seguramos a respiração e ficamos com os olhos grudados no último ponto onde o rastro havia sido visto, esperando que os destroços do submarino alemão, a primeira vitória da grandiosa frota brasileira, emergissem...
Pouco depois, um objeto escuro e reluzente surgiu das profundezas e passou a flutuar nas ondas. Outro veio logo a acompanhá-lo. E outro; mais outro. Urramos de felicidade no deque, como se tivéssemos vencido a guerra.
Aos poucos, no entanto, fomos percebendo a terrível realidade. Outros pedaços reluzentes vieram se juntar aos que flutuavam, que já formavam uma dúzia. O navio aproximou-se dos "destroços", e pudemos ver que não eram feitos de metal ou qualquer outro material produzido pelo homem. Pareciam - e eram, verdadeiramente - animais; toninhas, mais especificamente. Pedaços de golfinho coalhavam o mar ao redor da frota, e a tripulação observava os pobres cetáceos em silêncio, mesmerizada...
Não consegui dormir ontem, e não creio que o conseguirei nos dias que virão. Estou pensando em desertar no momento em que pisarmos em Gibraltar.
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(este diário é baseado em fatos reais)
segunda-feira, novembro 27, 2006
ressaca
ao lado de uma moça desconhecida.
Ela despertou, olhou pra mim
e começou a gritar por sua vida.
Caí no chão em cima
de uma garrafa vazia.
Saí correndo com os cacos na barriga,
com a moça atirando um abajur,
com um cachorro que queria morder meu saco,
com um cara que saiu do quarto ao lado.
Saí do apartamento de cuecas,
pulei doze lances de escada,
quando dei por mim, estava na calçada
numa rua que nem sabia o nome.
Dei o pinote quando vi o cachorro.
Vi marcas de batom no meu pescoço,
ouvi um apito e um guarda veio em meu encalço,
uma velhinha deu com a bolsa no meu baço,
o sinal abriu e um carro me deu um abraço.
Acordei com o cachorro no meu saco,
com o cara me socando,
com o policial me chutando,
com a moça me mordendo,
com a velha me bolsando.
Eu prometo
que é a última vez
que
eu
be
bo.
domingo, novembro 26, 2006
sono

A separação veio depois da única vez que ele dormiu aqui em casa. Até lá, tudo eram rosas. Depois de sairmos cada um de seu respectivo expediente – eu sou professora e ele é enfermeiro -, nos encontrávamos em meu apartamento e transávamos até o começo da manhã. Cinco, seis horas direto, quase todos os dias. Fantástico. O Jorge tocava em mim, me beijava, com uma segurança que me deixava mole. Não importava o estresse com os meninos da 4ª. série, jogando bolinha de papel e me insultando quando eu virava as costas: quando estava com ele, minha alma tomava um bom banho e as perturbações do dia escorriam como água suja. Ele me preenchia de um jeito... eu olhava seus olhos – e ele sorria. E eu sorria. Pulávamos, gozávamos, ríamos a noite toda. De manhã, eu caminhava insone para o trabalho, dolorida e feliz.
Não imaginávamos que as coisas pudessem melhorar. Era verdade: elas só pioraram.
Depois de várias semanas do Jorge saindo, no meio da madrugada, pra voltar à sua casa, perguntei se ele não gostaria de dormir comigo.
Ele ficou sério. Disse que não podia, infelizmente. Que não estava pronto para esse tipo de intimidade. Normalmente eu ficaria incomodada, mas a noite havia sido tão boa e ele havia dito aquilo de forma tão gentil que não me esquentei. Beijou-me e saiu.
No entanto, nas noites seguidas eu insisti no assunto. Fiquei martelando como ele poderia me comer por meses e depois dizer que não éramos íntimos o suficiente para que ele dormisse lá em casa. Não era só sexo, afinal de contas – saíamos às vezes e nos divertíamos muito. Ainda assim, ele continuou nas negativas.
- Não trouxe escova de dentes, toalha, gilete, e eu preciso me barbear quando acordo. – era uma de suas desculpas.
- Hoje não, amanhã. – era outra.
- Não quero te incomodar. – dizia, calçando o sapato com os olhos fugidios.
- Não posso.
Fitava meu rosto, muito sério. Eu pensava que havia outra mulher, que ele estava em regime semi-aberto e tinha que voltar para a prisão antes de dormir, que ele peidava insuportavelmente, que tinha que regar as plantas e sentia vergonha de me contar. Ou que sentia medo de mim, do que poderíamos nos tornar. Hoje, ele dormiria em minha casa. Amanhã, traria suas roupas. Pouco a pouco, nossas vidas se entrelaçariam e ele perderia a independência que prezava tanto. Mas ainda assim não fazia sentido: o medo de intimidade só se manifestava na ocasião em que eu lhe pedia para que ficasse. No mais, convivíamos normalmente, com carinho e cumplicidade. Sentia-me frustrada por realizar tantas coisas plenas a seu lado e não conseguir concretizar aquele desejo tão banal.
- Depois, - ele me falou, uma noite – eu conto.
Contou-me. Confessou que gostava de mim e ansiava voltar ao meu lado quando não estávamos juntos. Mas carregava um segredo que o impedia de adormecer comigo.
Disse-me que sonhava.
- Tem pesadelos?
- Pior. Delírios, horríveis, sufocantes, não consigo descrever. – falava baixinho, em lagrimas. – Não me lembro de nada na manhã seguinte. Por isso durmo pouco. Instintivamente, procuro acordar logo para não passar por isso. E é todo dia.
- Já foi ao médico?
- Muitos, mas ninguém consegue descobrir o que é. Já tentei de tudo.
Chorava. Tive pena. Reclamei porque ele não falara aquilo antes, que ter problemas durante o sono era um distúrbio normal e que eu o ajudaria. Eu, a heroína.
- Não é tudo. – respondeu – Também falo coisas quando estou dormindo. Coisas pavorosas.
Que coisas?
Tremia. Suas mãos suadas agarravam as minhas.
- Nenhuma mulher jamais conseguiu dormir comigo. Desde adolescente, meus pais colocaram isolamento acústico no meu quarto e trancavam a porta para que ninguém ouvisse.
Que coisas?
- Não posso dizer. – e explodiu em soluços.
Eu o abracei. Senti medo, mas também alivio. Estava próxima a ele e decidi ajudá-lo.
Depois de muita conversa, convenci-o a passar ao menos uma noite aqui em casa.
- Você não vai me atacar, não é?
- Não, – disse – não é assim. Mal me mexo. Só falo.
Não transamos naquela noite. Estavam os dois apreensivos: ele, pelo efeito que causava nas mulheres após adormecer; eu, pelo desconhecido.
Demorei a dormir. Minha última visão foi Jorge com os olhos arregalados, fitando o teto.
Eu estava na praia; caminhava entre as ruínas de uma casa abandonada e o mar, que, refletindo o sol ao entardecer, parecia sangue. Súbito, fui puxada de volta à consciência. Abri os olhos no escuro.
Jorge pronunciava algumas palavras com a voz grave e rude dos que acabaram de acordar. Sabia que isto aconteceria e não me surpreendi. O modo como a voz era inteligível e articulado, contudo, fez-me duvidar se estava dormindo. Sua respiração pesada e o tom inumano, sonâmbulo com que falava convenceram-me que sim.
Gradualmente, livrei-me dos restos de sono e concentrei-me para escutar as palavras. Elas entraram pelo meu ouvido e, navegando pelo corpo, agarraram e espremeram meu coração. Senti-me tonta, agarrada à colcha para não enlouquecer.
Lágrimas brotaram-me dos olhos, e bagas de suor escaparam-me pelos poros. Meu estômago contorcia-se a cada frase, a cada insulto balbuciado por Jorge. O homem doce que eu conhecia estava morto.
Segurei-me para não sacudi-lo e tirá-lo daquele transe. Havia lido que os sonâmbulos podem morrer instantaneamente se forem acordados. Mas também não conseguia permanecer ali: levantei-me e fui para a cozinha, mas as palavras de Jorge continuaram a assombrar. Eu entendera errado? Como alguém seria capaz de imaginar aquilo?
Como alguém carinhoso como ele poderia transformar-se numa aberração à noite? As coisas que ele dizia...
Bebi um copo d’água. Aninhei meu rosto entre as mãos e chorei. Por alguns instantes, senti o juízo me abandonar.
As coisas...
No outro dia, Jorge nada disse. Apenas olhou para mim quando, em minha inútil tentativa de fingir que nada acontecera, eu disse que ele havia permanecido em silêncio a noite toda.
Vestiu-se lentamente. Tomou o café; deu-me um beijo seco no rosto e avisou que chegaria tarde. Nunca mais o vi.
O que mais me assustara foi o tom com que ele falou seu discurso horrendo.
Calmo, lúcido, objetivo – como se estivesse acordado, brincando com meu desespero. Usando-me de cobaia num experimento de tolerância.
Às vezes imagino se o Jorge verdadeiro não seria o Jorge inconsciente, destinado a inocular seu veneno sobre a humanidade, enquanto o Jorge que eu amava seria o alter-ego, a fantasia.
De qualquer maneira, tento não gastar meu tempo pensando nessas coisas. Deixo a imaginação para o trabalho.
sábado, novembro 25, 2006
ano e meio

“Comemorar o quê?!”, dirão. “Não doeu, não foi terrível? Quantas vezes nesse tempo você não a imaginou em seus braços? Por quantos meses mais você irá se recriminar de haver terminado as coisas do jeito mais doloroso possível? O que há para se comemorar nisso?”
É verdade. Mas, mesmo com a depressão e o remorso, sempre pensei e ainda penso que tomei a decisão correta. Se hoje posso viver com sua memória de modo relativamente sereno, é porque tomei decisões que, mesmo precipitadas, saíram do fundo de minhas entranhas.
assim começa

Ontem, ela ligou. Não pude discernir muito o que dizia: compreendi apenas que estava bêbada e que sentia muito por nenhum de nossos encontros ter se concretizado. Percebi que ela sentia o mesmo que eu; que também se cansava das escrotices do destino.
Desde que nos vimos pela primeira e derradeira vez na casa de uma amiga em comum, rolou uma empatia mútua. Sincronicidade de tempos. Trocamos algumas palavras amistosas e medimo-nos com o olhar. Pude imaginá-la fazendo uma série de coisas, e não duvido que ela tenha pensado o mesmo. Anotamos os telefones e partimos, com a certeza de nos reencontrarmos. Mas nunca conseguimos.
No primeiro encontro, esperei duas horas no café. Ela ligou e disse que a avó havia sido internada. Desculpava-se. Normal.
Na semana seguinte, o pneu do meu carro furou a caminho do cinema. Quando cheguei, ela já tinha partido.
Pequenos acidentes e contratempos interpunham-se entre nós. Uma vez, descobri que ela havia estado no bar poucos minutos antes de eu chegar. Outro dia, no exato momento em que ela saía de casa para me ver, uma turbina de avião caiu em cima de seu prédio. Não estou brincando! Deu no jornal.
E eu, tão descrente de religiões e dos livros nos quais os deuses escrevem nossos nomes, gradualmente passei a crer na teoria do caos e em feng-shui.
Evangelista, que aparentemente estava fadada a tornar-se mais uma das muitas promessas feitas e não-cumpridas em minha vida, virou meu pesadelo: aquela que deveria ser e não foi.
Em nossos e-mails e telefonemas às altas horas da madrugada, eu sentia que ela pensava o mesmo e procurava desesperadamente um caminho de trair o destino. Aceitei o desafio, mas perdemos.
Quando eu saía rumo à sua casa, no horário em que eu estava certo de que a encontraria, acontecia alguma fatalidade: a avó de novo, uma emergência no trabalho, uma infecção estomacal. Um bêbado chegou a invadir a casa dela com o carro - e olha que ela mora no terceiro andar!
Eu consideraria tudo isso lorotas e a mandaria ao inferno caso não acontecesse o mesmo tipo de coisa comigo. E Isabela, um belo dia, transformou-se em meu Cristo particular: meu dogma. Eu nunca mais a vira, nunca a amara fisicamente, mas não era necessário; eu acreditava piamente em sua existência.
Não sou louco: juro que a vi. Por poucos segundos, digo. Ela atravessou a rua e desapareceu na esquina. Subiu no ônibus. Saiu apressada do cinema. Atendeu-me na farmácia. Fez meu imposto de renda.
Porque, faz tanto tempo desde que a vi, há tantos anos, que hoje todas as mulheres do mundo possuem o rosto de Isabela. Alguns dos homens, inclusive.
*
Ontem, ela ligou. Disse que estava bêbada e que sentia muito por nunca termos conseguido nos encontrar. Esses contatos já haviam virado rotina. Tudo bem. Eu a ouvi por algum tempo até ela sussurrar um “boa noite” torto e desligar. Minha querida Cristo.
Eu estava numa situação confortável. Poderia passar o resto da vida medindo minhas mulheres por Isabela. Por aquela que amei e nunca. Por aquela que esperei e me esperou. Pela minha amante de quartos separados.
Mas aí lembrei daquela do Ulysses Guimarães (devia ter algo de muito estranho naquele chopp pra eu me lembrar do Ulysses): ele disse que, se esse negócio de “e se”, “e se” funcionasse, Paris caberia no fundo de uma garrafa.
“E se...”
Mas agora chega.
sábado, novembro 18, 2006
café

Herdeiros dessa longa tradição, Viviane e Fulgêncio inauguraram seu “coffee-shop” no ano passado. Situado num canto tranquilo do shopping, o “Good Coffee” tornou-se o xodó e a obsessão do casal. Era seu primeiro grande empreendimento juntos após três anos de noivado. Os pais diziam que, com a loja, nascia o primeiro filho.
A mãe dela, empreendedora frustrada, resumiu com uma ponta de sarcasmo:
- O casamento deles está aí, agora.
Os dois não cabiam em si. Fulgêncio, empolgado, já pensava em deixar o emprego de enfermeiro e trabalhar 24 horas na cafeteria. Planejava expansões, filiais, abriria restaurantes e redes de supermercados. Mais cautelosa, Vivi já se dava por satisfeita se conseguissem pagar as prestações do apartamento em que pretendiam morar. Se muito, também o carro usado.
No dia da inauguração, chamaram ambas as famílias e todos os amigos. Conhecidos elogiaram a iniciativa do casal, afirmando que faltava espírito empreendedor ao povo, a coragem de entrar no jogo capitalista com vias de realizar seu próprio futuro e não esperar que o Estado lhe desse de mamar a vida inteira. É por falta disso, afirmavam, que o país estava na merda.
Fulgênco e Viviane sentiram-se a própria mola propulsora do crescimento e desenvolvimento nacional. Quando chegaram em casa, treparam como dois endemoniados.
A “Good Coffee” rendeu o suficiente para que não fosse necessário investir mais dinheiro, mas não lucrou nada durante os seis primeiros meses.
Ao final do prazo, os telefonemas do banco onde Fulgêncio havia feito o empréstimo ficaram mais frequentes.
Viviane desistiu de trocar os móveis do apartamento alugado onde moravam. Pouco depois, os dois se mudaram para outro alugado, menor.
As conversas sobre o gerenciamento da cafeteria estavam tornando-se cada vez mais acaloradas. Fulgêncio tentava convencer Viviane a tomar outro empréstimo e fazer melhorias na loja enquanto ela queria cortar gastos e despedir uma das funcionárias.
(Dizia que ela era incompetente, mas o que pensava mesmo era que a piranha estava dando em cima de Fulgêncio.)
De enfermeiro e professora, os dois converteram-se em economistas. Sacudiam planilhas de faturamento na cara do outro, disparando metas de planejamento e idéias de marketing. Começaram a dormir em camas separadas.
Quando estavam prestes a vender o ponto e terminar o noivado, uma nova loja de deparamentos abriu ao lado da “Good Coffee”. Seus numerosos funcionários passaram a almoçar e lanchar na cafeteria. O negócio ganhou novo ímpeto.
Espalhou-se o boca a boca. Pedindo um empréstimo aos seus pais, que, a essa altura, já se preocupavam com a sanidade mental da filha, Viviane comprou uma partida de café especial colombiano e roubou as receitas de uma cafeteria concorrente. O faturamento explodiu.
Fulgêncio largou o emprego e negociou a compra do espaço ao lado. Semanas depois, também abriu uma filial em outro shopping próximo.
O sucesso, contudo, não trouxe a serenidade de volta ao casal. Davam-se muito bem nas reuniões de negócios – cada um havia trazido dois sócios para a jogada – e revelaram-se excelentes empresários. Entretanto, após os encontros, voltavam para casa, comiam e dormiam sem falar uma palavra ao outro.
Viviane casou com um dos sócios, amigo que o ex-noivo havia apresentado. Fulgêncio continuou a dormir com a ex-caixa da cafeteria, agora promovida a gerente de estoque.
No mês passado, abriram a décima filial e a primeira fora do país. Já moravam em coberturas separadas e não se encontravam há tempo. Todos os negócios eram agora resolvidos por gerentes e administradores contratados.
Ontem, reencontrei Fulgêncio. Estava pálido, as mãos tremendo. Contou-me que havia ido para uma festa no iate de uma das acionistas da “Good Coffee”.
Depois de surubas e de uma rodada de pó, encontrou-se pensando em Vivi. Saiu do iate de manhã e dirigiu para o shopping, ainda com ela na cabeça.
As lojas abriam. O bafo frio da manhã de São Paulo fazia brotar lágrimas aos olhos e travava-lhe a garganta. Olhou a cidade fria que se delineava sob o sol – cem anos atrás, a poucos quilômetros dali, estendiam-se imensas plantações de café, colhidas por mãos negras e brancas. Pujança do Império; riqueza forte e assombrosa.
Foi até a “Good Coffee”, transformada num megaplex onde se vendia utensílios de cozinha e café de todos os sabores. Pediu um expresso.
Por mais que despejasse açúcar, no entanto, não conseguia livrar-se do gosto acre e amargo que sentia na bebida.